segunda-feira, abril 25, 2016

Impeachment do processo civilizatório

Eduardo Fagnani* | Publicado no Le Monde Diplomatique
Membro do grupo de economistas vinculado à Frente Brasil Popular

O objetivo de construir uma sociedade civilizada, democrática e socialmente justa deveria ser um dos núcleos de um projeto nacional. A Constituição de 1988 representa um marco do processo civilizatório do país. Pela primeira vez em mais de cinco séculos, ela assegurou formalmente a cidadania plena (direitos civis, políticos e sociais) para todos os brasileiros. O novo ciclo democrático inaugurado por ela, associado aos avanços sociais obtidos na década passada, contribuiu para a melhoria do padrão de vida da população, especialmente dos mais pobres.

Não obstante, o Brasil continua sendo um dos países mais desiguais do mundo. Essa marca tem raízes históricas ditadas pela industrialização tardia, pela curta e descontinuada experiência democrática e, especialmente, pelo longo passado escravocrata, cujo legado foi uma massa de analfabetos sem cidadania. Em pleno século XXI, o país ainda não foi capaz sequer de enfrentar desigualdades históricas herdadas de mais de três séculos de escravidão. Observe-se que, segundo estudo da ONU, a pobreza no Brasil tem cor: mais de 70% das pessoas vivendo em extrema pobreza no país são negras; 64% delas não completam a educação básica; 80% dos analfabetos brasileiros são negros; os salários médios dos negros são 2,4 vezes mais baixos que o dos brancos. No Rio de Janeiro, 80% das vítimas de homicídios resultantes de intervenções policiais são negras. A taxa de assassinatos de mulheres também tem clara dimensão racial. Entre 2003 e 2013, o assassinato de mulheres brancas caiu 10%; no mesmo período, o de negras subiu 54%.1

Segundo o Mapa da Violência, oBrasil ocupa o terceiro lugar, entre 85 países, no ranking de mortes de adolescentes. São 54,9 homicídios para cada 100 mil jovens de 15 a 19 anos, atrás apenas de México e El Salvador. A taxa brasileira é 275 vezes maior do que a de países como Áustria e Japão. Em média, dez adolescentes são assassinados por dia. O assassinato de jovens também tem cor. Morrem proporcionalmente sete negros para cada branco. No Maranhão morrem treze negros para cada branco.2

Nessas condições, o primeiro objetivo estratégico de um projeto civilizatório deveria ser enfrentar essas profundas desigualdades históricas. Em segundo lugar, preservar a inclusão social recente e aprofundar a cidadania social assegurada pela Constituição de 1988. Em terceiro, enfrentar as brutais desigualdades da renda, o que exige medidas voltadas para a revisão da estrutura tributária, a melhor distribuição da propriedade urbana e rural e a correção das desigualdades no mercado de trabalho. Quarto objetivo:
universalizar a cidadania social, pelo enfrentamento do déficit na oferta de serviços sociais públicos, que combina desigualdades no acesso entre classes sociais e entre regiões do país.

A criação de uma sociedade mais igualitária requer que a gestão macroeconômica crie um ambiente favorável para o objetivo de longo prazo de reduzir continuamente a desigualdade. O progresso material é vital para a melhoria generalizada das condições de vida da população. O crescimento continuado da produção e da renda é condição necessária para a estruturação do mundo do trabalho e a ampliação do bem-estar social.

Não obstante, o arcabouço institucional adotado pelos organismos internacionais desde os anos 1990, consubstanciado no chamado “tripé” macroeconômico, não converge para esses propósitos, pois visa unicamente preservar a riqueza financeira. A revisão desse arcabouço vem sendo introduzida por diversos países antes mesmo da crise internacional de 2008; e a própria ortodoxia internacional já o trata como o “velho consenso”. Mas, aqui no Brasil, o “tripé” macroeconômico, introduzido em 1999, tornou-se ideia fixa.

Qualquer crítica é considerada herética pelos ditadores do debate econômico nacional.

Fortalecer a indústria também é condição necessária para avançar no processo civilizatório. A experiência internacional ensina que nenhum país se tornou desenvolvido sem uma indústria forte e competitiva. Também seria necessário fortalecer a capacidade de financiamento do Estado. Há espaço para avançar na reforma tributária, na revisão dos incentivos fiscais e no combate à sonegação.

Taxas de juros estratosféricas ampliam continuamente as despesas financeiras, transferem renda para os mais ricos e enfraquecem a capacidade financeira dos governos para atuar em favor da redução das desigualdades.

Não existem perspectivas favoráveis para a construção de uma sociedade mais igualitária se esse projeto não for pensado na perspectiva da democracia. O contínuo aperfeiçoamento da democracia exige a reforma do sistema representativo, monopolizado pelos partidos e capturado pelo poder econômico. A mercantilização do voto e a ausência de partidos programáticos impõem limites ao presidencialismo de coalizão, tornando qualquer governo refém de interesses corporativos e fisiológicos. Essa é a raiz da corrupção generalizada do sistema político-partidário, que expõe as fraturas do modelo herdado do pacto conservador na transição para a democracia.

A criação de uma sociedade mais igualitária também requer o reforço do papel do Estado. Não há na história econômica do capitalismo nenhum caso de país que tenha se desenvolvido sem o concurso expressivo de seu Estado nacional. A democracia depende da pluralidade de ideias e, nesse sentido, é fundamental garantir que os meios de comunicação sejam o esteio de um debate plural sobre os problemas do Brasil e suas soluções, aprendendo com as lições de diversos países capitalistas desenvolvidos (Estados Unidos, França, Alemanha, Itália, Inglaterra, Espanha e Portugal, entre outros).

Repetindo 1954, 1961 e 1964

A crença nessa utopia foi possível desde a redemocratização dos anos 1980 até poucos anos atrás. Hoje somos devastados por uma sensação opressiva. A iminência de um golpe institucional – pois não há evidência de crime de responsabilidade cometido pela mandatária do país – e a ascensão ilegítima ao poder de representantes dos detentores da riqueza poderão convulsionar o país e aprofundar a captura e o restrito controle do Estado por parte desses setores. O golpe na democracia vem acompanhado pelo impeachmentda cidadania social. Trata-se de nova oportunidade para promover radical mudança na correlação de forças em benefício exclusivo do poder das finanças.

Nos últimos sessenta anos, a sociedade brasileira mudou para melhor. Mas as elites ainda adotam práticas dos anos 1950 e 1960. Continuam sendo “predatórias” e “incapazes de viver com o antagônico”. Como em 1964, “elas querem a derrubada do regime democrático. Elas não sabem e não conseguem conviver com o Estado democrático. Portanto, partem para sua destruição e dissolução, que ocorre através do golpe, ilegal e ilegítimo”.3

Às vésperas do segundo turno das eleições de 2014, um prócer da elite antidemocrática deu a senha do que viria a seguir. Repetiu em sua conta no Twitter4 a célebre frase de Carlos Lacerda, referindo-se a Getúlio Vargas: “Não pode ser candidato. Se for, não pode ser eleito. Se eleito, não pode tomar posse. Se tomar posse, não pode governar”.
Na verdade, a trama começou a ser tecida após as manifestações populares de 2013. Os oposicionistas foram sábios em “federalizar” a insatisfação popular contra a falência generalizada do sistema de representação política herdado do pacto conservador da transição para a democracia e as crônicas deficiências na oferta de serviços sociais, cuja responsabilidade é constitucionalmente compartilhada com governadores e prefeitos.

Em 2014, o “terrorismo” econômico encarregou-se de descontruir a gestão macroeconômica, com o objetivo de enfraquecer a candidatura oficial. A vitória da situação poderia representar mais doze anos de governo do Partido dos Trabalhadores. O fantasma de Lula em 2018 voltava a assustar, sendo imperativo vencer o pleito eleitoral. Economistas liberais, setores do mercado e a grande imprensa passaram a atribuir a perda do dinamismo econômico exclusivamente aos “excessos da intervenção” estatal, olvidando por completo a grave crise do capitalismo global em decorrência da debaclefinanceira de 2008 e seus desdobramentos. Na realidade, apesar de apresentar certa deterioração de alguns indicadores, o Brasil não apresentava, em nenhum aspecto considerado, um cenário de “crise terminal”, como foi difundido.5

Apesar das manobras, Dilma Rousseff venceu e tomou posse. Urgia, então, impedir a continuidade do governo ou sangrá-lo até as próximas eleições, para destruir o legado social dos governos petistas e ampliar a insatisfação popular dos mais pobres e das camadas médias, requisitos para fomentar as ações desestabilizadoras no front político-institucional. Esse ato foi encenado logo após outubro de 2014 e ao longo de 2015, paradoxalmente, contando com a ajuda do próprio governo, que adotou o programa econômico dos derrotados. O ato final poderá ser consumado nos próximos dias.

O Plano Temer

Em meados de 2015, em meio às tramas golpistas e antidemocráticas, o vice-presidente da República, Michel Temer, lançou seu programa de governo (“Uma Ponte para o Futuro”)6 e passou a montar o novo gabinete. O documento, que radicaliza e aprofunda o projeto liberal para o Brasil, propõe a “formação de uma maioria política, mesmo que transitória ou circunstancial”, em torno das propostas apresentadas. Contando com a colaboração de diversos economistas liberais, a iniciativa recebeu amplo apoio de parlamentares de diversos partidos da oposição, empresários e setores da mídia.

Num contexto em que a democracia poderá já ter sido violentada, a gestão macroeconômica será ainda mais ortodoxa. Armínio Fraga, um dos mentores da política econômica do “Programa Temer”, foi o coordenador do programa econômico de Aécio Neves em 2014. Naquela época, receitava “a defesa da volta do tripé como fio condutor da política econômica”, bem como a necessidade de reduzir a meta de inflação dos atuais 4,5%, um forte ajuste fiscal, a redução do intervencionismo do governo, a recuperação do câmbio flutuante para recompor o tripé e a autonomia jurídica do Banco Central.7 Recentemente, afirmou que “o Brasil precisa é de um ajuste enorme”, muito superior ao realizado na primeira administração Lula e pelo ministro Joaquim Levy. “Deveríamos ter uma meta de redução de 25 pontos percentuais do PIB da dívida bruta em alguns anos. E também deveríamos dobrar o grau de abertura em certo horizonte de tempo. São objetivos factíveis”, afirmou. Além disso, serão necessárias “reformas amplas e profundas”, com destaque para a reforma da Previdência e a desvinculação dos ajustes em relação ao salário mínimo e das fontes de financiamento das políticas sociais. “Nosso orçamento deveria ser 100% desvinculado, desindexado, forçando uma reflexão do Estado que queremos e podemos ter. Uma espécie de orçamento de base zero.”8

O aprofundamento das políticas econômicas de “austeridade” requer a radical supressão de direitos sociais e trabalhistas. Nesse caso, um dos focos é acabar com a cidadania social conquistada pela Constituição de 1988, marco do processo civilizatório brasileiro. Abre-se uma nova oportunidade para que esses setores concluam o serviço que vêm tentando fazer desde a Assembleia Nacional Constituinte.
A surrada tese ideológica do “país ingovernável” – sacada pelo então presidente José Sarney (1985-1990), num último gesto desesperado para evitar que a cidadania social fosse incluída na Carta Magna – voltou a ditar o rumo do debate imposto pelos representantes do mercado que conseguiram criar o “consenso” de que estabilizar a dinâmica da dívida pública requer a mudança no “contrato social da redemocratização”. Argumentam que os gastos “obrigatórios” (Previdência Social, assistência social, saúde, educação, seguro-desemprego, entre outros) têm crescido num ritmo que compromete as metas fiscais. Para eles, a crise atual decorre fundamentalmente da trajetória “insustentável” de aumento dos gastos públicos desde 1993, por conta dos direitos sociais consagrados pela Carta de 1988.9 Argumentam ainda que os juros elevados praticados no Brasil decorrem da “baixa poupança” do governo. Esta, por sua vez, é fruto da existência de “sociedades que provêm Estado de bem-estar social generoso com diversos mecanismos públicos de mitigação de riscos”.10A visão de que “o Estado brasileiro não cabe no PIB” também tem sido sentenciada por diversos representantes desse matiz.11
Em consonância com o “Plano Temer”, levantamento feito pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) aponta que tramitam no Congresso Nacional 55 projetos de lei e propostas de emenda constitucional que suprimem direitos sociais e trabalhistas, reduzem o papel do Estado e aprofundam mecanismos de controle fiscal.12

Depois do golpe

Faz parte da narrativa dos oposicionistas que, após o impeachment, haverá uma trégua política, condição necessária para a reorganização da economia. Difícil acreditar nessa possibilidade. Em primeiro lugar, porque falta legitimidade aos que serão “eleitos” pela manobra. Falta, sobretudo, legitimidade ética, pois praticamente todos os futuros mandatários da República – a começar pelo presidente da Câmara dos Deputados e o do Senado Federal, o aspirante a presidente da República, a maioria de seus apoiadores, grande parte dos parlamentares que integram a comissão de impeachment e aqueles que decidirão pela cassação no plenário – parecem estar envolvidos com algum “malfeito” no uso do dinheiro público. Em segundo lugar, as elites financeiras, políticas e midiáticas erram ao pressupor que a sociedade brasileira no século XXI é a mesma de meados do século passado. Ledo engano. Não somos mais um país agrário com uma sociedade politicamente desorganizada. Portanto, como aponta Safatle, a crença na trégua pós-impeachmenté falsa,“e os operadores do próximo Estado Oligárquico de Direito sabem disto muito bem”.13

O mais provável é o acirramento dos ânimos, da intolerância, da fratura ainda maior da sociedade e da luta de classes que está nas ruas. A governabilidade do país poderá depender de um Estado policial ainda mais severo que o utilizado em 1964. Agora, não basta intervir nos sindicatos.

O impeachment do processo civilizatório em pleno século XXI aí está, como que para comprovar que a democracia e a cidadania social são pontos fora da curva do capitalismo brasileiro. São corpos estranhos que os “capitalistas” nacionais ainda não aprenderam a usar, nem sequer em benefício de si mesmos.

* – Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho).

sexta-feira, abril 22, 2016

As máscaras caíram

Vivíamos no Brasil até então uma democracia pujante, um país orgulhoso que olhava para o futuro de forma inequívoca e confiante.

Víamos um país desenvolvido com igualdade e Justiça social.

Mas no dia 17 de abril tudo isso ruiu e tomamos ciência do Brasil real composto por uma casta predadora, egoísta e subordinada aos interesses dos Estados Unidos.

Os mesmos atores chulos do golpe de 1964 se juntaram de novo, sem os militares.

O que fica patente é que enquanto não denunciarmos e fazer a cobrança aos Estados Unidos, à Globo, Folha, Estadão, Veja e demais golpistas dos males do golpe de 1964 e desse que querem nos impingir, o risco do retrocesso não cessará no nosso país.

Junto com a mídia temos instituições de estado que também são golpistas.

Falo de parte do STF, de parte do ministério publico, da PF e do judiciário que sem eles essa traição ao povo brasileiro não prosperaria.

A figura do STF nesse processo é patética ao deixar que a Constituição seja corrompida pelo parlamento. Em 1964 o STF, com algumas exceções foi parte naquela jornada infeliz e fascista que jogou o país nas trevas por 21 anos.

A seletividade do poder judiciário, representado por Sergio Moro e do MPF, junto com Rodrigo Janot é exemplar como enganar a nação. Fingem que estão combatendo a corrupção e não o golpe de estado do qual são parte.Precisarão explicar muita coisa até o crime do grampo ilegal que o CNJ nunca julgará.

Muita gente foi enganada por eles, até o governo federal que deixou que as delações vazadas seletivas fosses feitas de forma irregular e criminosa.

A classe média aderiu em peso e juntou a isso o ódio fascista que foi inoculado pela Globo, Folha, Veja, Estadão, junto com as rádios que diuturnamente pregam a extinção do PT e do governo federal.

Temos ainda nesse caldeirão maldito a participação da OAB, que também esteve do lado fascista em 1964 e da FIESP, que em 1964, além do golpe financiou a operação Oban, para perseguir, torturar e assassinar quem era de esquerda.

Paulo Skaf simboliza tudo isso e não tenho dúvida de que eles fariam tudo de novo. São serials killers.

E tudo para que finalmente os Estados Unidos possam nos roubar o pré sal, os empresários possam transformar os trabalhadores brasileiros em bestas de carga, sem direitos trabalhistas e espoliados; os bancos continuem nos roubando via juros pagos pelo governo, do cheque especial e do cartão de crédito; as famílias midiáticas possam se locupletar com recursos federais e os ladrões alcunhados como deputados possam continuar roubando o país ad perpetum.

Fico imaginando se ministros como Celso Mello ou Gilmar Mendes são analfabetos funcionais ou foram corrompidos pela ilegalidade golpista.

Basta qualquer um ler a Constituição para ver que a presidenta só deveria sair se houvesse crime de responsabilidade.

Não precisa ser ministro do STF para entender isso.

Acho que não precisamos do STF, que custa muito caro ao povo brasileiro, para ter pessoas de tão baixo calibre moral e ético. Talvez deveríamos fechar o STF por ele descumprir a Constituição de 1988.

A elite brasileira está rasgando a Constituição junto com os poderes que deveriam protegê-la.

Dessa forma nenhuma lei passa a vigorar no Brasil.

As máscaras caíram, as cúpulas do país estão corrompidas e nenhuma instituição é mais representativa.

O país vive dias sem lei, a casa grande quer continuar nos roubando por mais 500 anos e somente o povo para barrar essa volta ao século XIX e tudo de ruim que esse golpe representa.

As famílias Marinho, Frias, Mesquista, Civita entre outras vem o nosso país como um grande clube privé, do qual usam e abusam.

O Brasil deveria cortar relações diplomáticas com os Estados Unidos até eles explicarem qual foi o papel da embaixadora deles, a mesma do golpe no Paraguai nessa irregularidade toda, como fizeram também em Honduras.

E denunciar toda essa corja ao mundo exigindo que a ONU tome providências para que a interferência dos Estados Unidos nos demais países do mundo seja barrada.

Esses atores golpistas cujas faces estão à mostra não agem pelo bem comum e estão contra o desenvolvimento social e econômico do Brasil.

Devem ser repudiados ad perpetum e chamados de traidores e golpistas onde estiverem.

quarta-feira, abril 13, 2016

O cargueiro e as hidrelétricas

Como sempre se dá com os grandes projetos erguidos nos últimos 13 anos neste país, a mídia preferiu dar atenção a aspectos negativos e polêmicos

Mauro Santayana - Jornal do Brasil

O céu era “de brigadeiro”.


Mas, para a maior parte da mídia passou em brancas nuvens a apresentação do novo cargueiro militar KC-390 da EMBRAER à Presidente da República, ao Ministro da Defesa, Aldo Rebelo, e ao Ministro da Aeronaútica, Nivaldo Luiz Rossato, após viagem de Gavião Peixoto à Capital Federal, nesta semana, na Base Aérea de Brasília.

E, no entanto, tratava-se apenas da maior aeronave já construída no Brasil, com capacidade de transporte de blindados, de brigadas de paraquedistas, de operar como avião-tanque para reabastecimento aéreo de caças, ou como unidade de salvamento, em um projeto que custou 7 bilhões de reais, em grande parte financiado pelo Governo Federal, que teve também participação minoritária de outros países, como Portugal, Argentina e a República Tcheca, destinada a substituir, no mercado internacional, nada menos que o Hércules C-130 norte-americano.

A mesma indiferença, para não dizer, desprezo, ou deliberada desinformação, ocorreu com o início do processo de geração da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, a terceira maior do mundo, com capacidade de 11.000 megawatts, na semana passada.


Ou com a hidrelétrica de Santo Antônio, situada no Rio Madeira, em Rondônia, a quarta maior do país, que colocou em operação sua 39ª turbina geradora há alguns dias.


Como sempre se dá com os grandes projetos erguidos nos últimos 13 anos neste país – e põe obra nisso – escolheu-se dar atenção, prioridade e divulgação preferencial a aspectos negativos, discutíveis e polêmicos como eventuais “estouros” de orçamento, atrasos ou suspeita de corrupção, do que às próprias obras.


Projetos que, depois de prontos, passarão a pertencer, inexoravelmente, ao patrimônio nacional e ao domínio do concreto, da realidade – e que, querendo ou não seus detratores – continuarão, agora e no futuro, beneficiando o país com mais empregos, mais energia, melhora no nível tecnológico de nossa indústria bélica e aeroespacial e da capacidade de defesa da Nação.


Bom mesmo, para essa gente, deve ter sido o governo do Sr. Fernando Henrique Cardoso, que, segundo o Banco Mundial, conseguiu encolher o PIB e a renda per capita do Brasil em dólares nos oito anos em que permaneceu à frente do Palácio do Planalto, aumentou a carga tributária em vários pontos percentuais e duplicou a relação dívida líquida-PIB, além de deixar uma dívida de dezenas de bilhões de dólares o FMI, sendo obrigado a racionar energia por falta de investimentos na geração de eletricidade - além de deixar que desaparecessem empresas como a ENGESA, sem forjar um simples parafuso para as forças armadas.


Naquele tempo não se discutia a suspeita de irregularidades na construção de usinas, refinarias, plataformas de petróleo, gigantescos sistemas de irrigação e saneamento, ferrovias, tanques, submarinos – até mesmo atômicos - usinas nucleares, estádios, aviões, mísseis, porque não se fazia quase nada disso em nosso país, e, quando havia encomendas, poucas, eram para o exterior, e não para aqui dentro.


Aludia-se, sim – muito timidamente com relação ao que se faz hoje – à possibilidade da existência de irregularidades na compra da emenda da reeleição no Congresso; e na sabotagem, esquartejamento, destruição, por exemplo, de grandes empresas nacionais, algumas delas centenárias, a maioria estratégicas, para sua entrega, a preço de banana, para estrangeiros, com financiamento farto, subsidiado, do BNDES.


Lembrando George Orwell - em seu inesquecível e cada vez mais atual “1984” - o Ministério da Verdade, ou Miniver, em “novilíngua” - formado pela parte mais seletiva, parcial, ideologicamente engajada e entreguista da mídia brasileira - pode fazer o que quiser – um diário chegou a trocar a foto de Dilma na cabine do KC-390, por outra, menos “favorável”, em pleno processo de impressão da tiragem do dia seguinte ao fato - que não se conseguirá derrubar obras como Belo Monte, Telles Pires, Santo Antônio, ou Jirau, ou o novo trecho da ferrovia norte-sul, que já leva soja de Anápolis ao Porto de Itaqui, no Maranhão, ou paralisar – com a desculpa de que vão dar ou deram prejuízo (prejuízo contábil, virtual, não interessa, afinal, dinheiro se necessário, como fazem os EUA, se fabrica), como se não bastassem o 1 trilhão e 500 bilhões de reais em reservas internacionais que o Brasil possui – a construção da Transposição do São Francisco ou a expansão da refinaria Abreu e Lima, que já está processando, em sua primeira fase, cerca de 100.000 barris de petróleo por dia.


As obras e as armas construídas, para o Brasil, como os fuzis de assalto IA-2, ou os radares SABER, ou o Sistema Astros 2020 – até mesmo porque as Forças Armadas não vão permitir que esses programas venham a ser destruídos e sucateados - vão ficar, por mais que muitos queiram que elas desapareçam em pleno ar, em uma nuvem de fumaça ou nunca venham a ser vistos em um livro de história.


Et latrare canes caravanis transit – ouviu, certa vez um romano, em um ponto qualquer da rota da seda, entre as dunas do deserto do Saara.
O calendário da pátria não se mede com o ponteiro fugaz das vaidades humanas.


O que importa para o Brasil é o que fica.


No futuro, o povo saberá datar essas conquistas - separando o joio do trigo - no tempo e nas circunstâncias.

Cultura pela democracia no Rio

segunda-feira, abril 11, 2016

Leblon: decisão do impeachment será na rua

A onda progressista cresce. Na corrida para 2018, Lula lidera


O Conversa Afiada reproduz artigo de Saul Leblon, extraído da Carta Maior:


O day after do Brasil será na rua


O capítulo decisivo após a votação do impeachment será na rua, onde a onda progressista cresce, e na corrida para 2018, que Lula lidera.

por Saul Leblon

Seja qual for o placar da Câmara no domingo, 17, o day after da votação não inaugurará uma nova hegemonia com força e consentimento para repactuar as linhas mestras da sociedade e do desenvolvimento brasileiros.

Ao contrário.

Provavelmente apertado, o resultado reafirmará a natureza do impasse histórico em que se encontra o país.

Assiste-se a uma ofensiva sem volta de uma parte da elite brasileira –com seus elos internacionais-- para derrubar o governo da Presidenta Dilma Rousseff e promover uma restauração neoliberal na oitava maior economia do planeta e principal referência da luta pelo desenvolvimento no mundo ocidental.

Se perder a sua aposta parlamentar, o golpe não desistirá.

Acionará outras modalidades com o mesmo objetivo, por uma razão bastante forte.

O conservadorismo simplesmente não dispõe de uma opção eleitoral capaz de derrotar o PT nas urnas e implantar o lacto purga de ‘livre mercado’ que preconiza para substituir o ciclo de expansão vivido desde 2004.

Nem mesmo o fuzilamento diuturno de Dilma, Lula e do PT desde a vitória presidencial de 2014 conseguiu atenuar essa limitação conservadora.

São robustas as chances de um novo revés em 2018.

Foi isso que o Datafolha alertou neste domingo –talvez com a deliberada intenção de acelerar o pacto golpista, mas escondido do leitor no pé da pág. 8.

Ali se acoberta uma singela notícia para um momento como o atual.

Lula lidera a corrida para 2018 em três de quatro cenários testados e empata com Marina num quarto.

Mais que isso.

Sob perseguição explícita do aparato judicial e midiático, refém de manipulações grosseiras e vazamentos seletivos, seu índice cativo de melhor presidente da história saltou para 40% em 20 dias (era 35% na pesquisa anterior, de março).

Sob massacre ininterrupto, ainda assim sua taxa de rejeição caiu de 57% para 53%, enquanto a dos rivais subiu, puxada pela de Aécio, que saltou 10 pontos, a de Temer (seis pontos) e a de Marina (cinco pontos).

O veículo dos Frias naturalmente omitiu interações que exigiriam cogitar um clima de virada no ambiente político, mas o fato é que a taxa de apoio ao impeachment de Dilma também caiu neste último Datafolha.

E não na margem de erro.

Em 20 dias de intenso fogo midiático contra a Presidenta, o apoio ao impeachment recuou expressivos sete pontos (61% x 68%).

É tão disfuncional para a linha da Folha que seus editores acharam por bem escondê-la.

O que teria levado a essa reversão a uma semana do voto decisivo?

A explicação ajuda a entender porque o conservadorismo foge da urna como o diabo da cruz.

O que mudou nos últimos 20 dias é que Dilma foi à luta.

A Presidenta despiu a tecnocrata e se assumiu líder de um governo sob cerco golpista.-

As cerimonias no Planalto deram centralidade aos movimentos sociais.

Abriu-se a agenda para atos políticos que de outra forma seriam sabotados pela mídia, como o encontro dos artistas, o dos intelectuais e o recente, com movimentos de mulheres.

Mais que isso.

Lula voltou às ruas.

Ao contrário do que muitos alardeavam, e alguns temiam, encontrou empolgante receptividade desde a apoteótica manifestação do dia 18, em São Paulo.

Para onde iriam as atuais taxas de rejeição do ex-presidente, em uma disputa eleitoral em que eventos como esses repetir-se-iam diariamente, sendo repercutidos no horário eleitoral para todo o país?

A resposta qualitativa sugere que para toda uma geração do PSDB, de Serra a Alckmin, passando por Aécio e Richa, a chegada ao poder passa pela caça a Lula e depende do êxito de um golpe de Estado.

Novas e velhas gerações progressistas e democráticas, ao contrário, reaprenderam no ascendente ciclo de mobilizações dos últimos 20 dias, que o governo tem base social disposta a defende-lo; e que a rua pode engasgar o golpe mesmo com o dispositivo midiático e o aparelho judiciário ao seu dispor.

Em resumo: se vencer dia 17, o golpismo enfrentará uma crescente, tenaz e diversificada resistência de partidos, movimentos sociais, sindicatos, intelectuais, artistas e classe média democrática.

É apenas um pálido retrato do que pode ocorrer.

Mas já se configura uma espiral só equivalente à de 2002, quando a esperança venceu o medo em concentrações e massa pelo país; ou às gigantescas manifestações pelas Diretas Já; ou ainda às demonstrações de contestação à ditadura militar, posteriores ao golpe de 1964, até a edição do AI-5, em 1969.

É essa a filiação do impressionante movimento que em poucas semanas –desde o quase sequestro de Lula por Moro, em 4 de março-- catalisou um sentimento difuso de indignação, sacudiu a classe média democrática, reaglutinou a intelectualidade progressista, articulou-a aos movimento sociais e às centrais de trabalhadores e começa a ganhar capilaridade organizada, com o florescimento de centenas de comitês pela defesa a legalidade, unificados na Frente Brasil Popular.

E não só em universidades.

Neste final de semana, intensificou-se a irradiação da resistência nas periferias das grandes capitais.

Em São Paulo, Brigadas Populares Contra o Golpe visitaram bairros como Jardim Miriam, Vila Prudente, Itaquera, São Miguel Paulista etc.

Trata-se de somar à resistência democrática a barragem popular contra o arrocho social e fiscal envelopado no programa do impeachment, ‘Uma ponte para o Futuro’.

Portanto, não há trégua à vista.

O que pretende o conservadorismo é incompatível com a legalidade, a Constituição e as urnas.

Significa que ao terceiro turno em curso, suceder-se-á um quarto, um quinto, um sexto até que se defina o novo ponto de coagulação política que dará forma a outro arranjo de poder e de desenvolvimento.

Interesses antissociais e antinacionais viram nesse vazio conflagrado a chance de se impor à sociedade por um atalho permeável a projetos de reduzida chance eleitoral.

Passo a passo vem promovendo os requisitos ao seu objetivo histórico, a saber:

1. destruir o Partido dos Trabalhadores e tornar suas lideranças sentenciadas e inelegíveis;

2. fazer a economia gritar: paralisar o mercado, sabotar o crescimento, congelar o investimento, gerar desemprego, insuflar incerteza, pânico e ódio, sobretudo na classe média;

3. desqualificar políticas públicas e avanços obtidos na organização da economia, do mercado de trabalho, das políticas sociais e da soberania geopolítica, corroendo na prática o espírito e os objetivos da própria Constituição de 1988.

A crispação se vale daquele que talvez tenha sido o erro superlativo dos governos liderados pelo PT: manter intocado o aparato de comunicação nas mãos da direita brasileira, ademais de supor que seria aceito como sócio remido no clube da lambança eleitoral.

A cobrança atual mostra o custo mortal dos dois erros.

Definitivamente, o arranjo de poder que sustentou os governos do PT desde 2003 não existe mais.

E não há viagem de volta na história. É preciso afrontar o projeto de país embutido no golpe com um outro projeto e uma outra governabilidade.

Dispor de base parlamentar continua vital.

Ela terá que ser recomposta. Mas não será mais capaz –se é que um dia foi-- de sustentar a coerência e a eficácia de um governo determinado a avançar na construção de uma democracia social no país.

Novos atores (frentes populares, mesas de pactos setoriais) e novas formas de participação democrática (conferências nacionais deliberativas, plebiscitos etc) terão que ser construídas. A informação plural terá que romper a blindagem do monopólio conservador, ou será impossível debater alternativas aos impasses do desenvolvimento.

A pedra de toque dessa trajetória consiste em restaurar transparência aos dois campos em confronto na sociedade para expor o agendamento conservador ao céu que o protege: os interesses da elite dominante.

Não há saída puro sangue.

Será preciso negociar pactos, metas, salvaguardas que preservem conquistas, admitam concessões temporais e garantam ganhos estruturais .

Saber onde estão as respostas e reunir a energia política capaz de validá-las é a fronteira que divide a derrota da inauguração de um novo ciclo histórico.

A hegemonia necessária à retomada do desenvolvimento nascerá desse encontro entre ideias e os fatos criados nas ruas e nas mesas de negociação.

A seguir, algumas diretrizes extraídas de documentos produzidos por intelectuais engajados em pensar o day after da nação brasileira:

‘...a preservação do emprego e da renda dos trabalhadores é crucial para estancar o retrocesso social e para a consolidação de um mercado interno de consumo de massas capaz de sustentar o crescimento econômico e, por consequência, revigorar a arrecadação governamental, baseada, em grande parte, nas contribuições sobre a folha de salário ... são necessárias medidas emergenciais de curto prazo: o Programa de Preservação do Emprego deve ser ampliado, ter sua duração estendida. A utilização de crédito direcionado dos bancos públicos, condicionado a acordos de manutenção dos empregos, é outro exemplo nessa direção’;

... a definição de meta fixa ou rígida para superávit primário desconsidera que as receitas são afetadas pelo comportamento do quadro macroeconômico nacional, internacional e do cenário político (...) O estabelecimento de “bandas” em torno de meta do superávit, ao invés da fixação de uma taxa fixa, especialmente num período de “travessia” onde reinam incertezas sobre os resultados, é o mais recomendável’;

‘...a retirada de parte ou da totalidade dos investimentos públicos das metas de superávit primário, é recomendável, uma vez que tais investimentos geram receitas futuras e se financiam no médio e longo prazo’; o desbloqueio do investimento público pode ser capaz de reativar o circuito do gasto privado, ajudando a economia a reverter sua atual situação recessiva e aumentando a receita fiscal’;

‘...em diversos países a meta para a inflação é distribuída num intervalo de 24 meses ou a uma variação de longo prazo, o que dá mais margem à política monetária (juros) para responder apenas às elevações permanentes de preços’;

‘...combater uma inflação de múltipla origem exige a adoção de políticas e instrumentos econômicos mais refinados e sofisticados que a simples manipulação da taxa básica de juros da economia. Não é com desemprego que se combate inflação’;

‘...Banco Central brasileiro deve ter um mandato duplo, centrado no combate à inflação e à geração de emprego, com a utilização de outros instrumentos de política monetária para a obtenção simultânea destes objetivos’;

‘... a taxa de câmbio real/dólar é umas das mais voláteis do mundo, com um mercado de câmbio extremamente permeável à especulação financeira. As altas taxas de juros têm grande responsabilidade na atração de capitais especulativos que provocam rápidas ondas de valorização e desvalorização cambial, mas há no país também uma institucionalidade que favorece essa especulação; aqui, os movimentos da taxa de câmbio não refletem o fluxo de moeda, mas sim o mercado de derivativos onde se negocia múltiplas vezes o volume de dólares do mercado à vista. A opção por uma taxa de câmbio menos volátil, que reflita as condições reais da economia, exige a regulação ampla do mercado de câmbio, não apenas para disciplinar o fluxo de moeda, mas também a operação com derivativos’;

‘...para voltar a crescer é preciso reverter a atual política monetária; taxas tão altas de juros não encontram nenhuma justificativa numa inflação que é preponderantemente de custos (desvalorização cambial, aumento de preços de bens e serviços monitorados pelo governo, e a própria elevação dos juros), além de alguns problemas de sazonalidade (alta dos alimentos devido à seca etc.). No longo prazo, juros como os atuais alimentam a desindustrialização e estagnação da economia com o consequente flagelo do desemprego. O Brasil vive uma recessão em processo avançado, com rápido aumento do desemprego e queda do rendimento médio do trabalho, ademais de índices crescentes de inadimplência e recuo no grau de utilização da capacidade produtiva da indústria. O déficit primário (sem o custo dos juros da dívida pública) representa pouco menos de 10% do resultado nominal global (que inclui o peso dos juros). A principal responsabilidade pela magnitude do déficit nominal, no Brasil, portanto, reside na manutenção desnecessária de taxas de juros excessivamente elevadas e nas rotineiras intervenções do Banco Central no mercado de câmbio, com a venda de swaps cambiais. Juntos, os juros e as perdas do BC com essas operações, já são responsáveis por despesas financeiras da ordem de 7% do PIB, ou seja, cerca de 90% de todo o déficit nominal. Mantido essa dinâmica não há como a relação dívida bruta/PIB deixar de crescer, asfixiando o lado real da economia em nome do combate a uma inflação que não é de demanda’;

‘... a melhor alternativa ao arrocho fiscal é a recomposição da capacidade de financiamento do Estado e a melhor alternativa à recomposição dessa capacidade de financiamento é o crescimento da economia, que potencializa as receitas governamentais. Dado o atoleiro no qual o país mergulhou, porém, deve-se aproveitar ainda os espaços existentes para recompor a capacidade de financiamento público pela revisão dos incentivos fiscais, o combate à sonegação e, principalmente, pela realização de reforma tributária que enfrente a vergonhosa injustiça do sistema brasileiro, altamente regressivo e ineficiente. A revisão da política de renúncia fiscal nos casos em que não produziu o resultado previsto também se impõe. O Brasil é vice-campeão mundial em sonegação de impostos (13,4% do PIB). Perdemos apenas para a Rússia (14,2% do PIB). Em valor, a evasão fiscal em 2011 foi de US$ 280 bilhões, só atrás dos EUA, de US$ 337 bilhões (o valor da sonegação norte-americana, no entanto, corresponde a somente 2,3% do PIB). A recriação (mesmo com alíquota reduzida) de um imposto sobre transações financeiras contribuiria assim para a definição de uma base de dados transparente, que dificultasse a evasão fiscal, concentrada nos setores mais ricos da sociedade’;

‘...o Brasil é uma das sociedades mais desiguais do mundo. O topo da pirâmide social, formado por 71.440 pessoas com renda mensal superior a 160 salários mínimos, totalizou rendimentos de R$ 298 bilhões e patrimônio de R$ 1,2 trilhão em 2013. Essa minúscula elite (0,05% da população economicamente ativa) concentra 14% da renda total e 22,7% de toda riqueza declarada em bens e ativos financeiros. Esses extremamente ricos apresentam elevadíssima proporção de rendimentos isentos de imposto de renda. Outra face da injustiça do sistema tributário brasileiro reside na inexistência de imposto sobre a distribuição de lucros e dividendos. Entre os 34 países da OCDE, apenas a Estônia adota semelhante bizarrice. Em média, a tributação total do lucro (integrando pessoa jurídica e pessoa física) chega a 43% nos países da OCDE (sendo 64% na França, 48% na Alemanha e 57% nos EUA). No Brasil, a taxa é inferior a 30%. As raízes desse descompasso remetem às reformas realizadas ditadura militar, ampliadas no ciclo neoliberal dos anos 90. Nenhum governo ousou mudar essa equação, que se transformou em fonte de degenerescência da estrutura tributária e em obstáculo para o crescimento econômico e a justiça fiscal. Não se justifica condenar os deserdados a pagarem os custos do desajuste fiscal recessivo para preservar o privilégio tributário dos ricos: é possível simultaneamente fazer justiça fiscal e justiça social’;

‘...é preciso construir uma rápida resolução das crises no setor de engenharia e petróleo e gás no Brasil, fundamentais para a retomada do investimento. Sem se contrapor às investigações de corrupção, o governo deve convergir para uma proposta de curto prazo: punir os corruptores e multar as empresas, sem retirar destas a capacidade de ação e investimento. Outra opção é terceirizar o controle e a gestão, com a troca do seu controle acionário quando a direção estiver desabilitada por crimes comprovados. A possibilidade de pagamento das multas judiciais com ações garantiria a saúde financeira dos grupos e possibilitaria uma saída negociada para alterar seu controle acionário, mantendo-se os investimentos e a capacidade de gerar emprego’;

11.’...é vital preservar a política salarial para garantir expansão do mercado interno de consumo de massas; esse é um dos pilares do ciclo de crescimento recente e constitui em importante vetor da impulsão da economia; também para a retomada do crescimento econômico e industrial é fundamental que não se retroceda na política de valorização do salário mínimo. O fortalecimento do mercado interno deve ser harmonizado com políticas monetária, cambial, comercial e industrial para evitar que seu dinamismo resulte apenas em aumento das importações, em detrimento da industrialização brasileira’;

‘...o gasto social brasileiro é um importante vetor da demanda agregada. Por seus efeitos multiplicadores, o sistema de proteção social se constitui em instrumento para, simultaneamente, impulsionar o crescimento e reduzir as desigualdades. Um incremento de 1% do PIB nos gastos com educação e saúde, por exemplo, gera crescimento do PIB de 1,85% e 1,70%, respectivamente; o aumento de 1% do PIB nos gastos dos programas Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada e Previdência Social eleva a renda das famílias de 2,25%, 2,20% e 2,10%, respectivamente; um choque de 1% do PIB no gasto com saúde enseja uma diminuição de 1,5% no índice de Gini’;

‘... É preciso barrar qualquer proposta que vise retirar (ou desvincular, como consta do programa do golpe, ‘Uma ponte para o Futuro’) recursos destinados aos investimentos sociais e aos serviços públicos, em particular aqueles com potencial dinamizador mais elevado. A melhoria da gestão dos recursos pode ser fonte de economia de recursos para a União, desde que não impliquem em redução da qualidade e do acesso’.

IMPEACHMENT E GOLPE CIVIL


Laércio Lopes*


O início do processo de impeachment da Presidente Dilma trouxe à baila questionamentos sobre a sua legalidade, o que levou a Presidente e seus defensores a tratarem o impeachment como golpe. A resposta dos defensores do impeachment - agora reforçada pelo posicionamento de pelo menos quatro ministros do STF-, é de que estando o impeachment previsto na CF/88 e em lei infraconstitucional, não se pode falar em golpe. Este último posicionamento se mostra simplista tanto do ponto de vista do direito como da política. Nesse sentido o ex-governador de São Paulo Claudio Lembo, citando um autor latino americano, em entrevista recente à Folha de São Paulo, disse que o impeachment se tornou uma novel ferramenta de golpe na américa latina, travestido de legalidade constitucional.

A imprensa tem divulgado que um membro de alta patente do poder judiciário tem mantido encontros com o presidente da câmara, com o vice-presidente da república e com senadores do PSDB, o mesmo que tem feito duras críticas ao governo e seu partido. Se em vez de ser um membro do poder judiciário a se encontrar com os principais atores do processo de impeachment fosse um general de alta patente, diríamos que poderíamos estar diante de um golpe militar travestido de impeachment, portanto há elementos para se dizer que está em curso um golpe civil, travestido de impedimento legal. Quando as tratativas extrapolam o âmbito do congresso nacional e nelas estão envolvidos membros de outros poderes, não se pode falar que está em jogo somente o processo de impeachment previsto na lei e na CF. Quando a articulação dá lugar a movimentações fora do congresso nacional, a legitimidade do processo se vê violada.

É de causar extrema perplexidade ver ministros e ex-ministros do STF virem a público, expressando um positivismo exacerbado, que foi fundamental para a vitória do nazismo na Alemanha, dizer que basta a norma estar positivada na Constituição para valer, sem qualquer compromisso com um exame moral ou de justiça. Isso sim, é violar a constituição e prostituir a sua tábua axiológica e o seu espirito. No dia 30.03.2016, na imprensa, o ministro Marco Aurélio do STF, esposou opinião de que se o crime de responsabilidade não estiver sobejamente comprovado tratar-se-ia de um golpe.

Ao se dizer que o impeachment está regrado legalmente por isso não é golpe, incorremos em graves erros e concordamos que um processo pode servir a chantagens, como foi deflagrado o processo ora em discussão quando todos viram que o presidente da Câmara somente o deflagrou ao não ser atendido em uma demanda pessoal. Seria como dizer: o processo de impeachment, no seu viés político, não tem regras morais.

Quando a CF e a Lei 1079/50 descrevem os crimes de responsabilidade o fazem em numerus clausus e deixam assentado que o processo somente tem justa causa se os crimes elencados forem devidamente tipificados e isso somente se viabiliza com um julgamento das contas, quando se tratar das chamadas pedaladas fiscais, não sendo possível tipificação por conta do mero julgamento por órgão auxiliar do congresso nacional. O princípio constitucional da presunção de não culpabilidade não permite que se extraia exegese da CF para se concluir que o presidente da república cometeu crime sem uma justificativa de tipificação. Se o critério fosse meramente político o crime a ser tipificado deveria ter natureza essencialmente política, ainda assim a justa causa somente adviria da tipificação dos atos cometidos com os dispositivos regentes do impeachment, seja pelo julgamento das contas pelo congresso nacional, seja por decisão do Poder Judiciário. Contudo, o processo de impeachment alberga tanto normas políticas como jurídicas, por isso se privilegiarmos apenas as normas políticas o processo de impeachment pode ser transformado em um instituto com regras somente vistas no parlamentarismo, portanto inapto para desapear o presidente. Sabemos no que no sistema jurídico brasileiro a única forma de tipificação das normas é a que se dá por intermédio de um julgamento, mas não de uma apreciação perfunctória por quem está desprovido de imparcialidade.

Dizer que o congresso pode tudo é banalizar o instituto, a Constituição, o processo democrático, e colocar em risco o próprio Estado Democrático de Direito. Admitir que o presidente da câmara - por ter a primazia para deflagrar o processo de impeachment-, pode, inclusive, chantagear o presidente, é o mesmo que dizer que a CF deu a ele o direito de iniciar um processo de “revogação” da vontade de milhões de brasileiros que elegeram o presidente, se não atendidas suas demandas pessoais.

Juristas de tomo dizem que basta garantir-se ampla defesa ao presidente para que a legitimidade do processo seja observada, ou seja, basta a garantida formal do devido processo legal; porém, há que se observar que o presidente da república está garantido pelo devido processo legal substantivo de permanência no cargo a que foi investido e os eleitores de verem mantidos o sentimento manifestado pelo voto conforme regras do Estado Democrático de Direito.

O ato do presidente da Câmara, que está reduzido ao momento de deflagrar o processo, estará sempre vinculado ao devido processo legal, sobretudo o substantivo, o que não era possível de se vislumbrar quando da promulgação da Lei 1079/50, já que a configuração do Estado Democrático de Direito era amplamente diversa da de hoje. Em se tratando de acusação de cometimento de crime, o intérprete deve se manter no âmbito da estrita legalidade, sendo-lhe defeso ampliar as hipóteses elencadas na lei ou na CF, o que se aplica também no processo de impeachment. Se a ato do presidente da Câmara não estiver na sua integralidade vinculado aos princípios constitucionais - inclusive o da moralidade-, na parte que não se vincula a qualquer princípio o titular deste poder torna-se ao mesmo tempo titular de um micropoder, descolado do poder da força normativa da Constituição, e o nosso sistema passa a ser formado por um sistema geral de poder inscrito na CF e outros micropoderes que se constroem ao se afastar a imposição da CF a determinados atos - sobretudo os políticos. Decorre disso que a CF passa a ser um documento de descontinuidades de poderes e a universalidade dos direitos humanos e fundamentais deixa de ter esta característica passando a ser um instituto com solução de continuidade e com tipificação precária, sem uma relação de interdependência, lançando esses efeitos ao processo democrático e ao Estado Democrático de Direito.

Na medida em que está expresso no art. 5°, LIV da CF que ninguém será privado da liberdade ou dos seus bens sem o devido processo legal, restou evidenciado que qualquer tipo de ato, independentemente da sua natureza, que tenha o potencial de privar alguém de algum direito, da sua liberdade ou bem, se curva ao devido processo legal.

O devido processo legal não se resume, como pensam e resumem alguns, à possibilidade de ampla defesa, mas, antes, com suporte no devido processo legal substancial, preserva a liberdade individual de não se ver processado sem justa causa, de não ver sua investidura ameaçada por atos não plenamente justificados e admitidos pela CF. No caso ora em comento a Presidente, com a aceitação do pedido de impeachment, perdeu a liberdade para exercer o seu mandato e está sendo privada de governar com tranquilidade. Se tudo isso são consequências naturais do processo de impeachment, então todas elas devem ser plenamente justificadas na CF e na garantia do devido processo legal substantivo. A preservação das regras do Estado Democrático de Direito denuncia que - ainda que o presidente tenha reprovação de 99% da população-, o processo de impeachment não pode ser transformado em um disfarçado recall, não reconhecido pela CF/88. Por isso é preciso fazer uma separação do que é descontentamento com a economia e o que é com o cometimento de crime de responsabilidade, porquanto somente o segundo pode ser considerado para o impeachment, embora em termos de política mostra-se quase impossível fazer esta separação.

Basta uma leitura –ainda que perfunctória do inciso LIV, do art. 5º da CF/88- para se concluir que, a liberdade e os bens das pessoas estão assegurados pelo devido processo legal substantivo, o que significa que os atos chamados políticos ou aqueles a que se querem dar natureza de interna corporis, ao violarem o referido princípio, não permanecem imunes a sindicabilidade do Poder Judiciário. Na lição de Carlos Roberto Siqueira Castro, na concepção originária adjetiva da cláusula do devido processo legal, esta não visava a um questionamento da substância ou conteúdo dos atos do Poder Público, em particular daqueles editados pelo legislativo, razão pela qual essa garantia não teria logrado desde logo erigir-se em limitação do mérito das normas jurídicas, o que viria a ocorrer anos mais tarde com a formulação da teoria do substantive due process. A partir de então deu-se uma exploração pretoriana das potencialidades da cláusula due process of law como mecanismo de controle axiológico da atuação do Estado e de seus agentes e do mérito dos atos normativos. Assim, o devido processo legal na sua dimensão substantiva nascera com ideia de proteção de direitos fundamentais de índole naturalista, controlando a razoabilidade e racionalidade da lei. Desse modo, uma lei não poderia ser considerada constitucional se não portadora de razoabilidade e racionalidade, o que tornara o devido processo legal substantivo em verdadeiro standard de justiça.

Poderíamos dizer que o devido processo legal substantivo consagra a ideia de totalidade da constituição - único princípio que tem esta característica -, posto que não se pode construir uma constituição sem o devido processo legal substantivo, eis que perderia ela a ideia de constituição se este princípio não for sempre observado. Tanto assim o é que José Afonso da Silva, no prefácio da obra de Carlos Roberto Siqueira Castro, diz que, embora o devido processo legal não viesse expressamente escrito nas CF 1967/69, bastava uma leitura atenta da Constituição para que o instituto nela fosse encontrado. A vida, a liberdade e a igualdade são processos. Às vezes se apresentam interligados por uma relação de interdependência, outras vezes a separação não se faz possível e em outras vezes a separação decorre de um corte metodológico / epistemológico, apenas para uma fundamentação adequada. Para que a vida, a liberdade e a igualdade sejam processadas no direito e na política - construídos culturais – faz-se necessário que os instrumentos racionalidade e razoabilidade sejam manejados a possibilitar a adequação daqueles processos nos instrumentos direito e política, para adequá-los ao Estado Democrático de Direito. Vale então dizer que o devido processo legal substantivo é a instrumentalização da racionalidade e da razoabilidade - tanto no direito como na política.

O jornal Folha de São Paulo publicou no dia 02.04.2016 que o Ministro Marco Aurélio teria deferido liminar para determinar que o deputado Eduardo Cunha admita o pedido de afastamento do vice-presidente Michel Temer e envie para uma comissão especial analisar. Esta decisão do ministro Marco Aurélio estaria absolutamente respaldada no devido processo legal substantivo que implica em dar sindicabilidade ao poder judiciário para analisar a racionalidade e razoabilidade do mérito dos atos administrativos e normativos de todos os poderes. Se assim não fosse, o presidente da Câmara teria poderes ilimitados e não limitados pelos princípios constitucionais, poder este maior do que o da Suprema Corte. Em um Estado Democrático de Direito não pode haver qualquer ato que não possa ser revisto pela Suprema corte na sua racionalidade ou razoabilidade, sobretudo quando viola um princípio constitucional - na espécie, os da moralidade e isonomia. Se de outro modo se entendesse o impeachment, ou seja, um processo com poderes ilimitados do presidente da Câmara, poderia ele se transformar sempre um golpe da maioria quando não contemplada pelo poder central em suas demandas particulares, deixando de ser um dispositivo jurídico constitucional. Esta decisão histórica – determinar que o presidente da câmara atenda a determinados pressupostos constitucionais - deixaria estremes de dúvidas de que os princípios constitucionais devem ser observado nas decisões políticas; isso porque se o vice-presidente também assinou normas que se referem a pedaladas fiscais e foi citado na operação lava-jato, violaria princípios vetores da Constituição, como o da isonomia e moralidade, deixar de fora o vice, vez que isso implicaria em se ter que, como já afirmamos acima, o presidente da Câmara pudesse se utilizar de um importante instrumento do Estado Democrático de Direito para favorecer amigos do partido ou da política. Aqui sim se aplicaria o direito penal do inimigo. Não é preciso qualquer esforço exegético para se convencer da correção da decisão, se for confirmada, o que será um marco no direito brasileiro, pois afastará visões conservadoras que querem interpretar a CF a partir de uma leitura que a rebaixa a um documento condicionado à vontade dos que querem o poder pelo poder, sem compromisso com uma transformação da sociedade e do mundo, além do que redefinirá o instituto do impeachment dando-lhe verdadeiros aspectos de constitucionalidade.


A regra fundamental da hermenêutica, segundo preconiza a doutrina da filosofia do direito, reside no reconhecimento de uma circularidade metódica: o círculo hermenêutico enuncia que a parte só é compreensível a partir do todo e que este dever ser compreendido em função das partes. Significa isso que a totalidade maior não restringe a interpretação da Constituição como texto abstrato, porquanto o ajustamento da norma do impeachment à Carta Maior postula também um resguardo do Estado Democrático de Direito para o futuro. Daí decorre que a totalidade maior, em casos tais, ou seja, quando há um ajustamento político-jurídico no sistema, há que se considerar não somente para um caso concreto, o que poderia se configurar em um casuísmo, mas sim utilizar o caso concreto como um paradigma que sinaliza como uma correção no sistema para o futuro, máxime quando a totalidade menor (norma infraconstitucional) revelar-se uma verdadeira lacuna axiológica, menos pelo seu envelhecimento enquanto interpretação teleológica do que pelo fato de o sistema constitucional ter ganhado uma nova configuração a partir de uma leitura axiológica da sua força normativa, como ocorreu no Brasil a partir de 1988. Conforme Hottois, a circularidade metódica postula que o vaivém entre as partes que compõem a totalidade não revela uma dialética verdadeiramente limitada e tem no historicismo um corolário desse procedimento para se compreender as expressões de espírito e situá-las em seu contexto histórico.

Nos E.U.A e em outras grandes democracias do mundo o poder judiciário é o grande protagonista e fiador da democracia e, no Brasil, sobretudo pela juventude de nossa democracia e consequente fragilidade das nossas instituições, impende que não seja diferente. O processo de impeachment perde a sua legitimidade se não for conduzido por parlamentares de ilibada conduta, não podendo ser conduzido por sócios majoritários de falcatruas.

Vivemos um momento único para redefinirmos como o processo de impeachment deve se conformar a uma leitura axiológica da Constituição, dos seus princípios e do seu espírito, visto que a ultrapassada tese da separação de poderes a afastar a sindicabilidade do Poder Judiciário somente serve à dominação dos que forem rejeitados nas urnas e buscam um atalho a burlar a via constitucional de acesso ao poder.

Uma leitura moderna sobre a titularidade das tarefas deferidas a cada um dos poderes na Constituição deve levar em conta que esta divisão não traz qualquer tipo de elemento estanque; ao revés, enuncia que o cumprimento dessas tarefas deve ser realizado por aquele poder que melhor cumpra os desígnios da Constituição, sobretudo se o cumprimento revelar uma sintonia com o espirito da Carta da República. Qualquer outro tipo de interpretação pode levar a uma constatação de que as constituições estão submetidas há uma hermenêutica da titularidade dos poderes, que acaba por submeter a Constituição, e não ser por ela submetida.

Em sendo o STF guardião da CF, não só em relação à normas jurídicas em sentido estreito, mas em relação a toda as normas nela contidas deve, pois, no processo de impeachment: i) zelar pela indivisibilidade de deflagração do processo quando o presidente e o vice-presidente incorrerem na violação das mesmas normas ou igualmente se omitiram; ii) declarar que todo o processo de impeachment se vincula às normas e princípios da CF, inclusive o da moralidade; iii) declarar que somente serão consideradas normas interna corporis as do regimento que não implicarem em violação de direitos de pessoas ou grupos; iv) que mesmo findo o processo no Senado Federal, com a condenação ou absolvição, pode ser chamado a averiguar se ocorreu alguma nulidade no processo e anula-lo, se for o caso, com suporte em um exame da racionalidade ou razoabilidade; v) declarar nulo o voto quando o deputado ou senador expressa-lo por um outro motivo que não o especificado no processo, já que o voto do parlamentar no caso se equipara a de um julgamento. Essa seria uma justificativa mínima para um julgador político.

Portanto, a grande tarefa que cabe aos juízes nos momentos de crise institucional é a de posicionar-se como garantes das regras do Estado Democrático de Direito sem tomar partido, eis que ao fim e ao cabo sem uma posição do Poder Judiciário que se mostre, serena, justa e fincada nos princípios verdadeiramente democráticos, não haverá saída.



O início do processo de impeachment da Presidente Dilma trouxe à baila questionamentos sobre a sua legalidade, o que levou a Presidente e seus defensores a tratarem o impeachment como golpe. A resposta dos defensores do impeachment - agora reforçada pelo posicionamento de pelo menos quatro ministros do STF-, é de que estando o impeachment previsto na CF/88 e em lei infraconstitucional, não se pode falar em golpe. Este último posicionamento se mostra simplista tanto do ponto de vista do direito como da política. Nesse sentido o ex-governador de São Paulo Claudio Lembo, citando um autor latino americano, em entrevista recente à Folha de São Paulo, disse que o impeachment se tornou uma novel ferramenta de golpe na américa latina, travestido de legalidade constitucional.

A imprensa tem divulgado que um membro de alta patente do poder judiciário tem mantido encontros com o presidente da câmara, com o vice-presidente da república e com senadores do PSDB, o mesmo que tem feito duras críticas ao governo e seu partido. Se em vez de ser um membro do poder judiciário a se encontrar com os principais atores do processo de impeachment fosse um general de alta patente, diríamos que poderíamos estar diante de um golpe militar travestido de impeachment, portanto há elementos para se dizer que está em curso um golpe civil, travestido de impedimento legal. Quando as tratativas extrapolam o âmbito do congresso nacional e nelas estão envolvidos membros de outros poderes, não se pode falar que está em jogo somente o processo de impeachment previsto na lei e na CF. Quando a articulação dá lugar a movimentações fora do congresso nacional, a legitimidade do processo se vê violada.

É de causar extrema perplexidade ver ministros e ex-ministros do STF virem a público, expressando um positivismo exacerbado, que foi fundamental para a vitória do nazismo na Alemanha, dizer que basta a norma estar positivada na Constituição para valer, sem qualquer compromisso com um exame moral ou de justiça. Isso sim, é violar a constituição e prostituir a sua tábua axiológica e o seu espirito. No dia 30.03.2016, na imprensa, o ministro Marco Aurélio do STF, esposou opinião de que se o crime de responsabilidade não estiver sobejamente comprovado tratar-se-ia de um golpe.

Ao se dizer que o impeachment está regrado legalmente por isso não é golpe, incorremos em graves erros e concordamos que um processo pode servir a chantagens, como foi deflagrado o processo ora em discussão quando todos viram que o presidente da Câmara somente o deflagrou ao não ser atendido em uma demanda pessoal. Seria como dizer: o processo de impeachment, no seu viés político, não tem regras morais.

Quando a CF e a Lei 1079/50 descrevem os crimes de responsabilidade o fazem em numerus clausus e deixam assentado que o processo somente tem justa causa se os crimes elencados forem devidamente tipificados e isso somente se viabiliza com um julgamento das contas, quando se tratar das chamadas pedaladas fiscais, não sendo possível tipificação por conta do mero julgamento por órgão auxiliar do congresso nacional. O princípio constitucional da presunção de não culpabilidade não permite que se extraia exegese da CF para se concluir que o presidente da república cometeu crime sem uma justificativa de tipificação. Se o critério fosse meramente político o crime a ser tipificado deveria ter natureza essencialmente política, ainda assim a justa causa somente adviria da tipificação dos atos cometidos com os dispositivos regentes do impeachment, seja pelo julgamento das contas pelo congresso nacional, seja por decisão do Poder Judiciário. Contudo, o processo de impeachment alberga tanto normas políticas como jurídicas, por isso se privilegiarmos apenas as normas políticas o processo de impeachment pode ser transformado em um instituto com regras somente vistas no parlamentarismo, portanto inapto para desapear o presidente. Sabemos no que no sistema jurídico brasileiro a única forma de tipificação das normas é a que se dá por intermédio de um julgamento, mas não de uma apreciação perfunctória por quem está desprovido de imparcialidade.

Dizer que o congresso pode tudo é banalizar o instituto, a Constituição, o processo democrático, e colocar em risco o próprio Estado Democrático de Direito. Admitir que o presidente da câmara - por ter a primazia para deflagrar o processo de impeachment-, pode, inclusive, chantagear o presidente, é o mesmo que dizer que a CF deu a ele o direito de iniciar um processo de “revogação” da vontade de milhões de brasileiros que elegeram o presidente, se não atendidas suas demandas pessoais.

Juristas de tomo dizem que basta garantir-se ampla defesa ao presidente para que a legitimidade do processo seja observada, ou seja, basta a garantida formal do devido processo legal; porém, há que se observar que o presidente da república está garantido pelo devido processo legal substantivo de permanência no cargo a que foi investido e os eleitores de verem mantidos o sentimento manifestado pelo voto conforme regras do Estado Democrático de Direito.

O ato do presidente da Câmara, que está reduzido ao momento de deflagrar o processo, estará sempre vinculado ao devido processo legal, sobretudo o substantivo, o que não era possível de se vislumbrar quando da promulgação da Lei 1079/50, já que a configuração do Estado Democrático de Direito era amplamente diversa da de hoje. Em se tratando de acusação de cometimento de crime, o intérprete deve se manter no âmbito da estrita legalidade, sendo-lhe defeso ampliar as hipóteses elencadas na lei ou na CF, o que se aplica também no processo de impeachment. Se a ato do presidente da Câmara não estiver na sua integralidade vinculado aos princípios constitucionais - inclusive o da moralidade-, na parte que não se vincula a qualquer princípio o titular deste poder torna-se ao mesmo tempo titular de um micropoder, descolado do poder da força normativa da Constituição, e o nosso sistema passa a ser formado por um sistema geral de poder inscrito na CF e outros micropoderes que se constroem ao se afastar a imposição da CF a determinados atos - sobretudo os políticos. Decorre disso que a CF passa a ser um documento de descontinuidades de poderes e a universalidade dos direitos humanos e fundamentais deixa de ter esta característica passando a ser um instituto com solução de continuidade e com tipificação precária, sem uma relação de interdependência, lançando esses efeitos ao processo democrático e ao Estado Democrático de Direito.

Na medida em que está expresso no art. 5°, LIV da CF que ninguém será privado da liberdade ou dos seus bens sem o devido processo legal, restou evidenciado que qualquer tipo de ato, independentemente da sua natureza, que tenha o potencial de privar alguém de algum direito, da sua liberdade ou bem, se curva ao devido processo legal.

O devido processo legal não se resume, como pensam e resumem alguns, à possibilidade de ampla defesa, mas, antes, com suporte no devido processo legal substancial, preserva a liberdade individual de não se ver processado sem justa causa, de não ver sua investidura ameaçada por atos não plenamente justificados e admitidos pela CF. No caso ora em comento a Presidente, com a aceitação do pedido de impeachment, perdeu a liberdade para exercer o seu mandato e está sendo privada de governar com tranquilidade. Se tudo isso são consequências naturais do processo de impeachment, então todas elas devem ser plenamente justificadas na CF e na garantia do devido processo legal substantivo. A preservação das regras do Estado Democrático de Direito denuncia que - ainda que o presidente tenha reprovação de 99% da população-, o processo de impeachment não pode ser transformado em um disfarçado recall, não reconhecido pela CF/88. Por isso é preciso fazer uma separação do que é descontentamento com a economia e o que é com o cometimento de crime de responsabilidade, porquanto somente o segundo pode ser considerado para o impeachment, embora em termos de política mostra-se quase impossível fazer esta separação.

Basta uma leitura –ainda que perfunctória do inciso LIV, do art. 5º da CF/88- para se concluir que, a liberdade e os bens das pessoas estão assegurados pelo devido processo legal substantivo, o que significa que os atos chamados políticos ou aqueles a que se querem dar natureza de interna corporis, ao violarem o referido princípio, não permanecem imunes a sindicabilidade do Poder Judiciário. Na lição de Carlos Roberto Siqueira Castro, na concepção originária adjetiva da cláusula do devido processo legal, esta não visava a um questionamento da substância ou conteúdo dos atos do Poder Público, em particular daqueles editados pelo legislativo, razão pela qual essa garantia não teria logrado desde logo erigir-se em limitação do mérito das normas jurídicas, o que viria a ocorrer anos mais tarde com a formulação da teoria do substantive due process. A partir de então deu-se uma exploração pretoriana das potencialidades da cláusula due process of law como mecanismo de controle axiológico da atuação do Estado e de seus agentes e do mérito dos atos normativos. Assim, o devido processo legal na sua dimensão substantiva nascera com ideia de proteção de direitos fundamentais de índole naturalista, controlando a razoabilidade e racionalidade da lei. Desse modo, uma lei não poderia ser considerada constitucional se não portadora de razoabilidade e racionalidade, o que tornara o devido processo legal substantivo em verdadeiro standard de justiça.

Poderíamos dizer que o devido processo legal substantivo consagra a ideia de totalidade da constituição - único princípio que tem esta característica -, posto que não se pode construir uma constituição sem o devido processo legal substantivo, eis que perderia ela a ideia de constituição se este princípio não for sempre observado. Tanto assim o é que José Afonso da Silva, no prefácio da obra de Carlos Roberto Siqueira Castro, diz que, embora o devido processo legal não viesse expressamente escrito nas CF 1967/69, bastava uma leitura atenta da Constituição para que o instituto nela fosse encontrado. A vida, a liberdade e a igualdade são processos. Às vezes se apresentam interligados por uma relação de interdependência, outras vezes a separação não se faz possível e em outras vezes a separação decorre de um corte metodológico / epistemológico, apenas para uma fundamentação adequada. Para que a vida, a liberdade e a igualdade sejam processadas no direito e na política - construídos culturais – faz-se necessário que os instrumentos racionalidade e razoabilidade sejam manejados a possibilitar a adequação daqueles processos nos instrumentos direito e política, para adequá-los ao Estado Democrático de Direito. Vale então dizer que o devido processo legal substantivo é a instrumentalização da racionalidade e da razoabilidade - tanto no direito como na política.

O jornal Folha de São Paulo publicou no dia 02.04.2016 que o Ministro Marco Aurélio teria deferido liminar para determinar que o deputado Eduardo Cunha admita o pedido de afastamento do vice-presidente Michel Temer e envie para uma comissão especial analisar. Esta decisão do ministro Marco Aurélio estaria absolutamente respaldada no devido processo legal substantivo que implica em dar sindicabilidade ao poder judiciário para analisar a racionalidade e razoabilidade do mérito dos atos administrativos e normativos de todos os poderes. Se assim não fosse, o presidente da Câmara teria poderes ilimitados e não limitados pelos princípios constitucionais, poder este maior do que o da Suprema Corte. Em um Estado Democrático de Direito não pode haver qualquer ato que não possa ser revisto pela Suprema corte na sua racionalidade ou razoabilidade, sobretudo quando viola um princípio constitucional - na espécie, os da moralidade e isonomia. Se de outro modo se entendesse o impeachment, ou seja, um processo com poderes ilimitados do presidente da Câmara, poderia ele se transformar sempre um golpe da maioria quando não contemplada pelo poder central em suas demandas particulares, deixando de ser um dispositivo jurídico constitucional. Esta decisão histórica – determinar que o presidente da câmara atenda a determinados pressupostos constitucionais - deixaria estremes de dúvidas de que os princípios constitucionais devem ser observado nas decisões políticas; isso porque se o vice-presidente também assinou normas que se referem a pedaladas fiscais e foi citado na operação lava-jato, violaria princípios vetores da Constituição, como o da isonomia e moralidade, deixar de fora o vice, vez que isso implicaria em se ter que, como já afirmamos acima, o presidente da Câmara pudesse se utilizar de um importante instrumento do Estado Democrático de Direito para favorecer amigos do partido ou da política. Aqui sim se aplicaria o direito penal do inimigo. Não é preciso qualquer esforço exegético para se convencer da correção da decisão, se for confirmada, o que será um marco no direito brasileiro, pois afastará visões conservadoras que querem interpretar a CF a partir de uma leitura que a rebaixa a um documento condicionado à vontade dos que querem o poder pelo poder, sem compromisso com uma transformação da sociedade e do mundo, além do que redefinirá o instituto do impeachment dando-lhe verdadeiros aspectos de constitucionalidade.


A regra fundamental da hermenêutica, segundo preconiza a doutrina da filosofia do direito, reside no reconhecimento de uma circularidade metódica: o círculo hermenêutico enuncia que a parte só é compreensível a partir do todo e que este dever ser compreendido em função das partes. Significa isso que a totalidade maior não restringe a interpretação da Constituição como texto abstrato, porquanto o ajustamento da norma do impeachment à Carta Maior postula também um resguardo do Estado Democrático de Direito para o futuro. Daí decorre que a totalidade maior, em casos tais, ou seja, quando há um ajustamento político-jurídico no sistema, há que se considerar não somente para um caso concreto, o que poderia se configurar em um casuísmo, mas sim utilizar o caso concreto como um paradigma que sinaliza como uma correção no sistema para o futuro, máxime quando a totalidade menor (norma infraconstitucional) revelar-se uma verdadeira lacuna axiológica, menos pelo seu envelhecimento enquanto interpretação teleológica do que pelo fato de o sistema constitucional ter ganhado uma nova configuração a partir de uma leitura axiológica da sua força normativa, como ocorreu no Brasil a partir de 1988. Conforme Hottois, a circularidade metódica postula que o vaivém entre as partes que compõem a totalidade não revela uma dialética verdadeiramente limitada e tem no historicismo um corolário desse procedimento para se compreender as expressões de espírito e situá-las em seu contexto histórico.

Nos E.U.A e em outras grandes democracias do mundo o poder judiciário é o grande protagonista e fiador da democracia e, no Brasil, sobretudo pela juventude de nossa democracia e consequente fragilidade das nossas instituições, impende que não seja diferente. O processo de impeachment perde a sua legitimidade se não for conduzido por parlamentares de ilibada conduta, não podendo ser conduzido por sócios majoritários de falcatruas.

Vivemos um momento único para redefinirmos como o processo de impeachment deve se conformar a uma leitura axiológica da Constituição, dos seus princípios e do seu espírito, visto que a ultrapassada tese da separação de poderes a afastar a sindicabilidade do Poder Judiciário somente serve à dominação dos que forem rejeitados nas urnas e buscam um atalho a burlar a via constitucional de acesso ao poder.

Uma leitura moderna sobre a titularidade das tarefas deferidas a cada um dos poderes na Constituição deve levar em conta que esta divisão não traz qualquer tipo de elemento estanque; ao revés, enuncia que o cumprimento dessas tarefas deve ser realizado por aquele poder que melhor cumpra os desígnios da Constituição, sobretudo se o cumprimento revelar uma sintonia com o espirito da Carta da República. Qualquer outro tipo de interpretação pode levar a uma constatação de que as constituições estão submetidas há uma hermenêutica da titularidade dos poderes, que acaba por submeter a Constituição, e não ser por ela submetida.

Em sendo o STF guardião da CF, não só em relação à normas jurídicas em sentido estreito, mas em relação a toda as normas nela contidas deve, pois, no processo de impeachment: i) zelar pela indivisibilidade de deflagração do processo quando o presidente e o vice-presidente incorrerem na violação das mesmas normas ou igualmente se omitiram; ii) declarar que todo o processo de impeachment se vincula às normas e princípios da CF, inclusive o da moralidade; iii) declarar que somente serão consideradas normas interna corporis as do regimento que não implicarem em violação de direitos de pessoas ou grupos; iv) que mesmo findo o processo no Senado Federal, com a condenação ou absolvição, pode ser chamado a averiguar se ocorreu alguma nulidade no processo e anula-lo, se for o caso, com suporte em um exame da racionalidade ou razoabilidade; v) declarar nulo o voto quando o deputado ou senador expressa-lo por um outro motivo que não o especificado no processo, já que o voto do parlamentar no caso se equipara a de um julgamento. Essa seria uma justificativa mínima para um julgador político.

Portanto, a grande tarefa que cabe aos juízes nos momentos de crise institucional é a de posicionar-se como garantes das regras do Estado Democrático de Direito sem tomar partido, eis que ao fim e ao cabo sem uma posição do Poder Judiciário que se mostre, serena, justa e fincada nos princípios verdadeiramente democráticos, não haverá saída.

*Advogado, Mestre em Direito - PUC-SP