quarta-feira, julho 08, 2015

Richard Duncan: A bolha chinesa e o desespero dos banqueiros


por Luiz Carlos Azenha

Richard Duncan é autor do livro The Dollar Crisis, lançado em 2003, que anteviu a crise financeira global deflagrada em 2008 com a implosão do banco de investimentos Lehman Brothers nos Estados Unidos. Em entrevista à revista New Left Review, ele define o capitalismo em que vivemos como a era do “creditismo” e prevê que qualquer regulamentação do sistema financeiro resultará num colapso econômico global, por revelar as falcatruas nas quais o sistema hoje se sustenta. Ele identifica a origem da crise atual na decisão dos Estados Unidos de abandonar o padrão-ouro, que exigia que o país tivesse depositados 25 centavos em ouro para cada dólar impresso pelo Tesouro.

Sugiro a leitura da entrevista completa, muito interessante. Em inglês, aqui.

Trechos que elegemos traduzir:

Primeira parte

Segunda parte

Terceira parte

Quarta parte

New Left Review: Em 2003 você disse que a economia chinesa era uma bolha esperando para estourar. Como você a vê hoje?

Richard Duncan: Uma bolha ainda maior esperando para estourar. Quando eu escrevi The Dollar Crisis, o superávit da China com os Estados Unidos era de U$ 80 bilhões; agora é de U$ 300 bilhões, mas os Estados Unidos não podem continuar a expandir seus déficits comerciais, o que significa que o superávit da China vai cair, criando um ambiente muito mais difícil. Em 2009, quando o superávit chinês foi corrigido significativamente, a manchete foi: 20 milhões de operários perdem o emprego e voltam para casa para plantar arroz.

Aquilo quase estourou a bolha. A resposta do governo chinês foi deixar os bancos chineses aumentarem o total de empréstimos em 60% nos dois anos seguintes. Como resultado deste estímulo maciço, todo mundo emprestou dinheiro e os preços das propriedades dispararam. Mas agora, três ou quatro anos depois, ninguém consegue pagar de volta, o sistema bancário pode estar próximo de um colapso — embora, oficialmente, a taxa de inadimplência seja extremamente baixa — e terá de ser resgatado pelo governo.

Todo o modelo chinês está em dificuldades sérias: eles tem expandido sua produção industrial em 20% por ano faz décadas, e agora há capacidade excessiva de produção em todos os setores. Os norte-americanos já não podem comprar a produção e 80% dos chineses ganham menos de 10 dólares por dia, assim não conseguem comprar o que eles produzem em suas próprias fábricas. Se eles continuarem a expandir sua capacidade industrial, o problema vai apenas piorar. Penso que eles vão ser obrigados a seguir o modelo do Japão, que tem grande déficits de orçamento para evitar que a economia desabe numa depressão; se eles fizerem isso agressivamente, num bom cenário a China talvez tenha crescimento médio de 3% pelos próximos dez anos.

NLR: De qualquer forma, há um potencial mercado para a primeira geração que vai comprar automóveis e máquinas de lavar, em escala maciça — centenas de milhões de pessoas? Não está adiante de nós?

Richard Duncan: Não necessariamente, a não ser que os salários chineses aumentem — gente que ganha 10 dólares por dia não pode comprar uma máquina de lavar; mesmo que pudesse, o apartamento não seria suficientemente grande para caber uma máquina. O desafio é, se os salários chineses atingirem a quantia astronômica de 15 dólares por dia, existem 500 milhões de pessoas na Índia que trabalham por 5 dólares/dia e os empregos vão se mudar para lá. Então, há o risco de uma corrida para o salário mais baixo, a não se que a gente concorde em criar um salário mínimo global.

NLR: Como você vê o estado atual do setor bancário dos Estados Unidos? Em agosto o New York Times soou o alarme sobre o fato de que o cartel de grandes bancos era o único regulamentador do mercado de derivativos de U$ 700 trilhões, mas depois disso parece que se calou.

Richard Duncan: Uma forma de ver o problema é que quem cria a riqueza tem o poder político. Sob o feudalismo, o poder estava nas mãos da aristocracia que tinha terra. Sob o capitalismo industrial, os capitães da indústria controlavam o poder político. Mas nas últimas décadas a riqueza nos Estados Unidos vem da criação de crédito. Quando os bancos criaram mais e mais riqueza, os banqueiros se tornaram influentes politicamente, de forma crescente; no fim dos anos 90 se tornaram incontroláveis. Primeiro repeliram a [lei] Glass-Steagall [que, entre outras coisas, separava os bancos de consumo dos bancos de investimento] e, no ano seguinte, aprovaram uma coisa chamada Commodity Futures Modernization Act, que removeu as regulamentações dos mercados de derivativos e permitiu a eles vender os papéis no varejo quase sem nenhuma regulamentação. Desde 1990, o total de contratos de derivativos aumentou de U$ 10 trilhões, que já era um número grande, para U$ 700 trilhões — o equivalente a 100 mil dólares por pessoa no planeta, ou o PIB global combinado dos últimos 10 anos. Não há nada no mundo que você pode oferecer em garantia para estes contratos de derivativos; o sistema está se tornando cada vez mais surreal. Você pode imaginar o lucro que os bancos conseguem a partir dos U$ 700 trilhões — primeiro criando os derivativos, depois vendendo e usando os papéis para finança estruturada.

Os derivativos são usados basicamente como veículos de jogatina: você pode apostar na direção das taxas de juros ou das commodities, ou qualquer outra coisa. Mas a maior parte dos negócios não é entre setores reais da economia; dois terços são entre os próprios bancos. Noventa por cento dos contratos de derivativos são vendidos no varejo, o que significa que nenhum regulador sabe o que está acontecendo; mas 10% são vendidos em bolsas, portanto sabemos algo sobre eles. Da última vez que olhei, o movimento daqueles 10% — em dinheiro que troca de mãos, todos os dias — era de U$ 4 trilhões. Agora, se os outros 90% venderem da mesma forma — pode ser mais, menos, não sei — isso seria alguma coisa perto de U$ 40 trilhões por dia.

Se houvesse mesmo um imposto bem pequeno nestas transações de derivativos o governo teria uma enorme fonte de renda, imposto que outras pessoas não teriam de pagar. A maior parte dos negócios é fechada em Londres e Nova York, assim não há o risco de mudança — a ameaça de que todo esse negócio mudaria para a China; os chineses não deixariam seus bancos fazerem estas loucuras. Todos os grandes escândalos de contabilidade dos últimos vinte anos —Fannie Mae, Freddie Mac, General Electric — envolveram finança estruturada, com os culpados usando derivativos para manipular seus portfólios e evitar a cobrança de impostos; os bancos ganham grandes tarifas com isso.

Dado o que sabemos sobre mercados desregulamentados e o incentivo da indústria bancária para promover finança estruturada, parece difícil que nestes U$ 700 trilhões não haja todo tipo de fraude acontecendo. Se você fosse um país do Golfo Pérsico, produtor de petróleo — sem dar os nomes — por que você não manipularia o preço do petróleo, com a ajuda de um dos grandes bancos de investimento dos Estados Unidos/ou uma das grandes multinacionais do petróleo, quando ninguém vê o que você está fazendo? Você fecha contratos que empurram o preço do petróleo para cima e o preço futuro do petróleo empurra para cima o preço à vista. A maioria das commodities é provavelmente manipulada desta forma, sendo o petróleo a mais óbvia.

NLR: O objetivo da lei Dodd-Frank não era acabar com a venda de derivativos no varejo?

Richard Duncan: A Dodd-Frank exigia que os bancos colocassem todos os derivativos em bolsas até a metade de 2011 — mais de um ano atrás. Mas a data foi empurrada para o futuro, sem especificar quando. Em algum momento os reguladores devem ter se dado conta de que, se você colocar tudo à venda nas bolsas, revelaria tamanha fraude e corrupção que todo o sistema implodiria. O valor real dos bancos poderia se revelar algo como menos U$ 30 trilhões — é por isso que não falem, são muito grandes para falir porque estão muito falidos para o governo ser capaz de absorvê-los.

Os bancos deveriam ser obrigados a fazer negócios com derivativos nas bolsas e ter margens de segurança dos dois lados, da mesma forma que quando uma pessoa tem uma conta com um corretor de ações; é ok emprestar dinheiro, mas é preciso ter uma certa margem de segurança; e então, se alguém enfrenta um problema, tem margem suficiente para cobrir as perdas e cair fora. Da forma como é hoje, não é feito através de bolsas, não tem transparência — ninguém sabe quem está fazendo o que — e não há margem de segurança. A indústria reclama que adotar margens sairia muito caro, vai prejudicar os negócios. É como dizer que ter de pagar por seguro de saúde ou seguro da casa própria prejudica meu negócio — mas é o preço da segurança. Se não houver seguro de graça, tem de pagar.

Naturalmente que a indústria está lutando com unhas e dentes, porque já não pode mais criar crédito, já que o setor privado não pode mais assumir dívida; se eles forem forçados a abandonar o proprietary trading nas suas próprias contas, como a regra Volcker exige; se forem forçados a negociar os derivativos em bolsas — então não serão mais a grande fonte de criação de riqueza e seu controle e exercício do poder político serão grandemente diminuídos. Eles estão tentando desesperadamente manter sua capacidade de criar riqueza em um ambiente muito difícil. O creditismo é muito menos estável ou sustentável que o capitalismo industrial — e parece estar bem próximo do abismo.

NLR: Então não há esperança de que legislação financeira reforme o setor? Você argumentaria em defesa de sustentar o sistema bancário, porque seria um desastre global se fosse reestruturado?

Richard Duncan: Não diria que não tenho nenhuma esperança nisso, mas é muito difícil, porque teriam de encontrar uma forma de reestruturar o sistema bancário sem causar seu colapso completo e não sei se existe tal fórmula. Não sei o que vai acontecer com o sistema bancário. Não está claro como eles vão continuar lucrando se não podem aumentar a oferta de crédito e não podem expandir a porção sem regulamentação do mercado de derivativos na mesma taxa exponencial. O problema é que se o sistema bancário falir, vai destruir tanto crédito que tudo o mais desabaria, da mesma forma que desabou quando os meios de pagamento foram destruídos em 1930 e 1931. Agora é a oferta de crédito que os formuladores de política estão determinados a impedir que se contraia, pela mesma razão.

Não penso que vão deixar qualquer banco europeu falir. Em novembro de 2011 houve muita conversa sobre a falência dos bancos franceses, mas estava claro que o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional iriam resgatá-los. Caso contrário, o Banco Central dos Estados Unidos socorreria, por exemplo, o Société Générale — se o Soc Gen falir, o Deutsche Bank cai e, em seguida, o J.P. Morgan. Vão todos falir juntos. Então seria o caso de resgatar o Soc Gen — ficaria mais barato que o Banco Central dos Estados Unidos resgatar todo mundo. Não há escolha. Não deu outra, o Banco Central Europeu deu uma cambalhota [mudando sua posição], imprimiu um trilhão de euros e salvou todo mundo. É o que vão continuar a fazer enquanto for possível, porque sabem que do contrário haverá o colapso dos anos 30.

NLR: Trabalhar as formas positivas e negativas do creditismo — parece ser o essencial do que você defende. É o sistema que temos, mas devemos assumir o controle dele, adotar programas de perdão de dívida e estratégias de investimento racional que prometam ser produtivas.

Richard Duncan: Exatamente. Penso que da próxima vez poderemos fazer melhor.

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