quarta-feira, dezembro 16, 2015

Requião: Vamos mudar o Brasil

O Conversa Afiada reproduz artigo do senador Roberto Requião, publicado no site Desenvolvimentistas:


Requião: Vamos mudar o Brasil
Por Roberto Requião

Se abstrairmos o momento em que vivemos e olharmos o Brasil de uma perspectiva histórica, veremos que o nosso país como nação é um grande êxito.

Saindo de levas populacionais marginalizadas deslocadas de suas origens, criamos um povo novo. Indígenas, portugueses e africanos, acrescidos depois de gente de todo mundo, formaram o povo brasileiro, hoje uno e diversificado, dotado de identidade, algo que inexistia há relativamente poucas gerações.

Estruturamos um sistema produtivo, habitamos um território bem definido, falamos a mesma língua, sem dialetos, fundamos um Estado Nacional, constituímos memória e sentimentos comuns.

Estamos unidos por uma clara identidade nacional. Ela não tem raízes em ideias de raça ou de religião, em vocação imperial, em xenofobias e ódios, em qualquer tipo de arrogância. Tudo nos une na construção exitosa de um mundo novo no Novo Mundo.

Olhamos sempre para o futuro, somos abertos ao que é novo, aceitamos a diferença e temos na cultura – uma cultura de síntese – a nossa razão de existir.

Somos um grande país e temos o maior povo novo do mundo moderno.

No entanto, paradoxalmente, nossa história registra também um enorme fracasso: esse povo, a imensa maioria, não assumiu até hoje o controle de sua Nação.

O estatuto colonial originário transmudou-se em dependência externa e o escravismo prolongado em gigantescas desigualdades sociais.

Ao longo da história, governado por uma elite que nunca se identificou com o seu povo, nunca se sentiu nacional, o Brasil mudou, mas sempre de forma a conservar relações com o passado.

Até recentemente, essa situação podia perpetuar-se, com alto custo humano, apesar de comprometer significativamente a nossa existência. Agora não pode mais: o crescimento demográfico, a formação de inúmeras grandes metrópoles, o acesso à informação e a maior capacitação técnica colocaram o nosso povo diante de um desafio incontornável, o desafio tornar-se o agente de sua história.

O Brasil, que desde a origem se organizou para servir ao mercado mundial, terá agora de organizar-se para si mesmo. O Brasil de poucos terá de ser o Brasil de todos.

Se formos incapazes de dar esse salto, nossa existência como Nação soberana e sociedade organizada estará em perigo. Seria mais realista dizer: com a crise atual este risco é crescente.

É essa a origem e o sentido da crise brasileira atual. Por isso ela é dolorida, profunda, duradoura. Ela não reside na corrupção, fenômeno sempre presente na natureza humana gananciosa. Reside, sim, na falta de diretrizes das lideranças que galvanizem o povo na construção de um Projeto Nacional e que puna aqueles que o desvirtua.

Nossa história recente é uma impressionante sequência de promessas frustradas.

É em oposição à desesperança, ao pessimismo, à baixa autoestima que apresento à Nação um documento programático para redefinir a própria inserção na vida política brasileira neste momento crucial.

Temos uma herança a reivindicar. Foi como próceres e intelectuais do antigo MDB – depois, PMDB – que participamos da vida pública. O velho PMDB, não este que aí está. O velho PMDB, que teve como marco a Assembleia Nacional Constituinte de 1988, presidida por Ulysses Guimarães.

A Constituição continha importantes conquistas, avanços e potencialidades. Na área política, devolveu aos brasileiros o direito de eleger diretamente o seu Presidente, ampliou a participação cidadã, reequilibrou os três Poderes do Estado, criou novas instituições de defesa da sociedade e redesenhou o pacto federativo.

Na economia, deu prioridade às empresas brasileiras de capital nacional e manteve a participação do Estado em setores estratégicos.

Na área social, defendeu os direitos trabalhistas e definiu um sistema integrado de Seguridade, dotado de orçamento próprio e voltado para garantir amparo aos segmentos sociais mais fragilizados: saúde pública para os doentes, previdência para os que ultrapassaram o período de vida laboral, assistência social para portadores de deficiência e pessoas em situações de risco.

Havia um projeto civilizatório por trás de tudo isso.

No entanto, todas as conquistas da Constituição de 1988 foram, por inúmeras emendas, anuladas.

Na década de 1990, deu-se a contra-reforma conservadora, feita em etapas, como se fosse um golpe de Estado estendido no tempo.

A Constituição Cidadã, escrita à luz do dia, com ampla participação, foi sendo esquartejada por meio de decisões sucessivas que a sociedade não acompanhou, nem compreendeu, nem controlou e sequer foi chamada a referendar.

Na economia, a ideia de um futuro construído por uma coletividade que interage democraticamente, tendo como foco o bem-estar para todos, foi substituída pelo futuro opaco que resulta do jogo de mercado. A cooperação deu lugar a uma competição feroz que só interessa aos mais fortes; o conceito de empresa nacional desapareceu da nossa legislação e o papel do Estado foi erodido e debilitado.

Na área social, com o anunciado “fim da Era Vargas”, os direitos trabalhistas ficaram sob ameaça e o sistema de Seguridade, subordinado à lógica do arrocho fiscal, foi retalhado até tornar-se irreconhecível.

Nosso crescimento econômico despencou. Depois de cinquenta anos de crescimento rápido, completamos duas décadas perdidas, seguida por uma terceira contemplativa e caminhamos a passos largos para uma quarta depressiva. Deixamos de ser a oitava e passamos a ser a décima sexta economia industrial do mundo.

A riqueza concentrou-se nas atividades vinculadas ao mercado financeiro, que se tornou mais atrativo que os investimentos produtivos, que geram empregos e salários.

A economia desnacionalizou-se ainda mais, com empresas brasileiras sendo transformadas em massa – até mesmo nos setores mais estratégicos – em filiais de multinacionais, que reservam para as matrizes as atividades mais nobres. Os vínculos tênues desse capital estrangeiro com o espaço econômico nacional atrofiam a capacidade de controlarmos o nosso processo de desenvolvimento.

A incipiente, e recente, tentativa de construir um Estado nacional de bem-estar social foi interrompida.

O Estado perdeu capacidade de realizar, induzir e coordenar investimentos, tornando-se refém do sistema financeiro.

O tempo histórico da Nação ficou subordinado ao tempo curto do capital financeiro.

O país que em poucas décadas fez a Petrobrás, a Companhia Vale do Rio Doce, a Embrapa, a Fundação Oswaldo Cruz, a Embraer, a Eletrobrás, uma rede de excelentes universidades públicas, o IME e centenas de empresas e instituições desse tipo – que até hoje o sustentam – perdeu a capacidade de fazer, criar e ousar.

Há muitos anos só conjugamos os verbos cortar, vender, desnacionalizar, fatiar, desmontar, desfazer.

Compreendemos a gravidade da crise brasileira e desejamos propor um novo projeto à Nação.

Trata-se agora de reconstituir o bloco histórico capaz de retomar a construção do Brasil, o bloco formado pelos grupos sociais que vivem no mundo da produção, do trabalho e da cultura, de um lado, unidos ao povo mais pobre, de outro.

Assim, proponho como base para construção do projeto nacional cinco compromissos.

1. O compromisso com a democracia. Ele aponta para o aperfeiçoamento do sistema político brasileiro em bases amplamente participativas, com o resgate da dignidade da função pública em todos os níveis. E punição aos corruptos.

2. O compromisso com a soberania. Ele representa a nossa determinação de dar continuidade ao processo de construção nacional, buscando recuperar para o Brasil a autonomia decisória.

3. O compromisso com a solidariedade. Construir uma nação de cidadãos, eliminando-se as chocantes desigualdades na distribuição da riqueza, da renda e do acesso à cultura.

4. O compromisso com o desenvolvimento. Ele expressa a decisão de pôr fim à tirania do capital financeiro e à nossa condição de economia periférica, dizendo que mobilizaremos todos os nossos recursos produtivos e não aceitaremos mais a imposição, interna ou externa, de políticas que frustrem o nosso potencial.

5. O compromisso com a sustentabilidade. Ele estabelece uma aliança com as gerações futuras, pois se refere à necessidade de buscarmos um novo estilo de desenvolvimento, socialmente justo e ecologicamente viável.

A expressão imediata do nosso descaminho é a ampla predominância, já faz muito tempo, de uma “macroeconomia do curto prazo” que se nutre do próprio fracasso: quanto maior o apelo a ela, maior a crise; quanto maior a crise, maior o apelo. Ela precisa ser substituída por uma economia do desenvolvimento, com uma combinação de políticas monetária e fiscal que nos coloque no rumo do pleno emprego, pois o direito ao trabalho é o suporte da cidadania.

Isso exige desde logo medidas conjugadas como:

- transformação progressiva e ordenada da dívida pública em investimento produtivo, em obras de infraestrutura e em novas fábricas;

- controle da entrada e saída de capitais;

- redução da taxa básica de juros para níveis internacionais;

- administração do câmbio em um patamar favorável ao equilíbrio das contas externas;

- e política fiscal e monetária que busque a estabilidade dos preços.

Nos últimos anos, mais de 40% dos recursos da União têm sido dissipados com encargos de dívidas financeiras, restando bem menos de 5% para investimentos.

A desproporção dos gastos com o serviço da dívida, em relação aos demais gastos do Estado, é chocante.

No orçamento da União em vigor, um mês de pagamento de juros corresponde mais que o dispêndio anual de todo o Sistema Único de Saúde.

Quinze dias correspondem mais que o gasto anual com educação.

Dez dias, bem mais que os recursos alocados no Programa Bolsa Família.

Cinco dias de pagamento de juros cobrem com sobras o gasto previsto em um ano para a construção de habitações populares.

Um minuto corresponde mais que à alocação anual de recursos com a defesa dos direitos humanos.

Tamanha deformação provoca um aumento irracional da dívida externa. Pois as obras em curso, insuficientes, acabam sendo realizadas com financiamento do Banco Mundial ou do BID.

Endividamos-nos em dólar para realizar obras que poderiam ser completamente financiadas em moeda nacional.

Essa engrenagem precisa mudar. Os trilhões de reais que compõem a atual dívida pública precisam ser usados criteriosamente para financiar obras de infraestrutura, segurança e defesa, agricultura e fábricas.

Uma nova política macroeconômica exige também o controle sobre a movimentação de capitais.

A movimentação sem regulamentação, para dentro e para fora, alteram, antes de tudo, as relações de poder. A movimentação sem regras impede o controle e até mesmo o cálculo da taxa de câmbio, ameaçando, com esse descontrole, desorganizar o sistema de preços em que se baseia a economia real. Como o mercado de câmbio é excepcionalmente volátil, ultra-sensível a movimentos especulativos, o capital financeiro adquire um poder de veto sobre quaisquer decisões que a sociedade queira tomar. Encurralado, o Estado torna-se refém desses movimentos. O poder soberano troca de mãos.

A arquitetura institucional da política econômica está virada de ponta-cabeça. Tendo o Banco Central como seu operador – pois ele age com autonomia, como um Estado dentro do Estado –, o sistema financeiro subordina a ação de todo o Estado nacional e do setor produtivo.

A democracia se frustra, pois o poder real fica fora ao alcance do povo.

Na nova arquitetura que propomos, o Banco Central precisará trabalhar de forma intimamente articulada com o Tesouro Nacional, ambos perseguindo metas combinadas não só para a inflação – como hoje –, mas também para o emprego, a utilização da capacidade produtiva e o volume de crédito ofertado à economia real.

É vital retomar investimentos em grande escala em infraestrutura. Ineficiência e crises em energia, transportes e telecomunicações transformam-se em ineficiência e crises sistêmicas, que atingem todos os empreendimentos. Esses são setores que exigem projetos grandes e de longa maturação, sempre relacionados a um planejamento estratégico.

O papel do Estado na elaboração dessa visão sistêmica permanece insubstituível.

Só retomaremos um crescimento acelerado se adotarmos uma estratégia que, contrariamente ao que ocorre hoje, torne mais homogêneos os níveis de produtividade e de renda existentes em nossa sociedade.

Quanto à renda, quanto mais igualitária for a sua distribuição, maior e mais variada será a demanda, e mais rapidamente o mercado interno alcançará dimensões que permitam ganhos de escala na produção nacional de bens e serviços, o que aumenta também a nossa capacidade de competir nos mercados externos.

Paralelamente, o Estado precisará definir um conjunto de políticas destinadas a baratear significativamente os custos da alimentação, da habitação e dos transportes.

A mais recente Pesquisa de Orçamento Familiar, realizada pelo IBGE, mostra que mais de 75% da renda das famílias brasileiras dirigem-se apenas a esses três itens – alimentação, habitação e transportes.

Além de ser um indicador de baixa qualidade de vida – pois as pessoas apenas moram (mal), se deslocam (mal) e comem (mal) –, é uma informação decisiva para a política econômica, pois explica a atrofia do mercado interno, que poderia ser o mais importante motor do nosso desenvolvimento.

Na nova pauta de investimentos públicos, destacam-se também aqueles ligados à educação, em todos os níveis, desde a pré-escola até a universidade.

Na última década, o Estado arrecadou cada vez mais, gastou cada vez menos com a sociedade e, mesmo assim, suas contas permanecem desequilibradas. Incapaz de compensar o enorme déficit financeiro, o corte de gastos aparece sempre como insuficiente, recolocando a necessidade de novos cortes mais adiante.

Povos sem Estado são facilmente expulsos da História. Os países capturados por essa dinâmica, como a que predomina no Brasil, terminam por encaixar-se, de forma subordinada, na nova ordem mundial unipolar.

Mas essa ordem não é estável nem permanente. A formação da União Europeia e o fortalecimento da China contêm as sementes de uma nova ordem multipolar. O espaço econômico da União Europeia rivaliza em tamanho com o dos Estados Unidos, e o euro pode vir a questionar a primazia do dólar.

As economias do Leste da Ásia, por sua vez, crescem muito rapidamente e formam uma área cada vez mais integrada, com o estado chinês cumprindo um papel regional cada vez mais relevante. Nos três principais continentes – América do Norte, Europa e Ásia – surgem megaestados regionais, comandando grandes economias, com ampla base territorial e populacional.

A América do Sul, o Oriente Médio e a África são as grandes regiões do mundo que ainda não definiram os seus próprios projetos regionais e não constituíram, nem estão em via de constituir, os seus megaestados. Estão marginalizadas.

No caso da América do Sul, duas grandes possibilidades estão colocadas. A primeira vem sendo defendida por um número cada vez maior de cidadãos e instituições: a constituição de um projeto sul-americano que garanta a união dos nossos povos e a inserção soberana dos nossos países no sistema internacional. A segunda, que tem na Alca e seus sucedâneos o seu centro de articulação, reforçaria e tornaria quase irreversíveis os processos de fragilização do continente, com sua incorporação formal a uma área regional sob controle direto dos Estados Unidos.

Nossa margem de manobra no cenário internacional aumentará significativamente se a América do Sul assumir um projeto próprio. É um continente com grande potencial. A complementaridade das economias é enorme. A Venezuela é o segundo país mais importante do mundo em recursos energéticos, só atrás da Rússia. A Argentina tem uma agricultura fortíssima. Dos dez países mais bem dotados em recursos biológicos, seis estão na Amazônia. Temos gás, petróleo, minérios, capacidade de geração elétrica, água, terras, insolação abundante.

Nossos povos podem construir com facilidade uma identidade comum. Um projeto sul-americano é necessário e viável. O Brasil tem um papel central nisso e, sem pretensões de hegemonia, tem grande interesse nessa integração.

Mas é preciso ressaltar que só teremos política externa forte se tivermos controle sobre nossa própria base produtiva, capacidade de defesa, estoques estratégicos de alimentos e matérias-primas essenciais, capacidade de produzir nossas sementes e medicamentos, investimentos pesados e coerentes em capacitação científica e tecnológica, alto grau de cidadania, e assim por diante.

Projetos multilaterais que permitam um reposicionamento, como o BRICS, devem ser incentivados. Esse conjunto de condições é vital para podermos tomar decisões com uma boa margem de autonomia.

A sociedade brasileira está vivendo uma época critica. Sua sobrevivência depende da solução que for encontrada. De forma consciente ou não, seremos cada vez mais chamados a tomar decisões, num ou noutro sentido, que dizem respeito a questões decisivas: afinal, o Brasil tem sentido? Deseja mesmo se autogovernar? Pretende fazer do seu povo o construtor da Nação?

Respondemos: Sim!

A ampla predominância do capital internacional e de seus associados internos, no contexto de uma dependência essencialmente financeira, tem impedido a continuidade dos processos de construção nacional.

“Nunca foi tão grande a distância entre o que somos e o que poderíamos ser”, disse Celso Furtado, antes de nos deixar.

As condições essenciais para preparar o salto do Brasil no século XXI são de natureza política (com a definição de um projeto próprio e a vontade de levá-lo adiante) e cultural (identidade clara, autoestima elevada). Aqui reside uma fragilidade a ser combatida. Temos de repor a verdade que vem sendo destruída há mais de vinte anos pela elite venal. Somos um povo belo; mestiço, sincrético, tropical, feliz, tolerante e orgulhoso de si próprio. Amamos o Brasil.

Estamos no limiar de uma fase histórica nova, em que o povo brasileiro assumirá o comando de sua Nação. Sua elevação plena à condição cidadã é, de longe, o nosso principal desafio. É preciso transformar a eliminação da pobreza e da incultura, sob todas as suas formas e manifestações, em um objetivo explícito ao qual a sociedade subordina os demais. Este objetivo nunca será atingido se for tratado, como hoje, como o resultado presumido de um modelo econômico qualquer.

Sabemos ainda sermos um país pobre, com brutais desigualdades.

Mas temos um parque industrial articulado e quase completo. Uma população jovem, com presença marcante de quadros técnicos e pessoas habituadas à produção moderna. Agricultura capaz de responder a estímulos adequados. Vasto espaço geográfico, recheado de recursos de todo tipo. Capacidade científica.

A História está perguntando se a nossa geração vencerá a crise que vivemos e as nossas instituições terão a grandeza de fazer desabrochar a promessa civilizatória contida na sociedade brasileira.

Convocamos todos os brasileiros que desejam responder que o façam repetindo o nosso sim.

segunda-feira, dezembro 14, 2015

FHC: da teoria da dependência à chefia do golpe

dependência é estrutural, dizia FHC em 1967. A dependência é inexorável, diz agora o chefe do golpe que pretende revigorá-la.

por: Saul Leblon

Carta Maior

O fracasso das manifestações da direita neste domingo não deve alimentar ilusões: o golpismo distrai a rua, enquanto costura uma transição por cima.

A baldeação consiste em chutar a laranja seca representada pelo operador Eduardo Cunha, para substituí-la por uma sigla de sumo adequado ao novo estágio de legitimação: FHC.

A operação assemelha-se à das famílias mafiosas.

Em certo momento dos negócios é necessário polir a reputação para manter o essencial. Entra-se para a vida política.

A dificuldade maior, no caso da famiglia tucana, não é apenas disfarçar o lastro com a vigarice, mas sobretudo provar que o adversário é a exclusiva fonte da vigarice nacional.

Extirpado e curetadas as ramificações com o populismo, tudo será como antes. Voltaremos aos anos dourados dos 90, quando as privatizações, a anemia do investimento público e o porre de capitais especulativos fez do Brasil o que se sabe.

A dificuldade em enterrar o morto é que ele ainda respira. E não apenas por aparelhos.

A atuação brasileira na Conferência do Clima, em Paris --contribuindo de forma marcante para o desfecho superior ao esperado, desconcertou o jogral do Brasil aos cacos.

Foi preciso que o presidente dos EUA, Barack Obama, orientasse seu secretário de Estado, John Kerry, a ‘colar’ na mediação da brasileira Izabella Teixeira, ministra do meio ambiente, para que o noticioso local admitisse o que o conservadorismo nega, sonega e combate.

O novo degrau do Brasil na geopolítica mundial.

‘Ministra brasileira ganha destaque nos debates da COP-21. Izabella Teixeira é uma das autoridades mais assediadas do encontro’.

Foi o que estampou o site de O Globo no último sábado, quando o documento da CoP 21 era arrematado no joelho pelos negociadores (leia a íntegra do documento aqui)

De onde o ‘insuspeito’ veículo dos notórios Marinhos tirou isso?

Do fato de que o Brasil virou referência na CoP 21 graças a sua ousadia na definição de metas próprias --única nação em desenvolvimento a se comprometer em cortar emissões em termos absolutos; à credibilidade lastreada em resultados superlativos já alcançados pelo país e à qualificação técnica inquestionável da ministra de Estado, Izabella Teixeira.

Tudo isso soa a conversa de marciano para quem tem como referência exclusiva o noticioso das próprias Organizações Globo, na grande confluência formada internamente entre o golpismo e a vigarice nos dias que correm.

Daí o parêntesis algo desconcertante aberto pelo noticiário da CoP.

A desconexão espantosa não decorre da realidade.

Mas da forma como ela tem sido filtrada pelo oligopólio midiático no país.

Aos fatos.

Quando a crise mundial gritava mais alto, em 2009, eram poucas as nações dispostas a conversar sobre restrições impostas pelo aquecimento global.

A conferência de Copenhague acabou em fiasco.

O Brasil nadou na contracorrente.

Fez na esfera ambiental o que adotaria depois na economia, com políticas keynesianas, a contrapelo da maioria das nações, que dobraria a aposta no arrocho neoliberal.

Por conta própria, o governo Lula fixou então uma meta de redução de gases de efeito estufa, tendo como referência o ano de 2005.

O noticiário especializado carimbou: ‘retórica’.

Errou.

A redução alcançada até 2012 foi de 41%, graças sobretudo ao recuo de 79% no desmatamento na Amazônia legal entre 2004 e 2015.

Foi a bordo desses números que a ministra Izabella Teixeira desembarcou em Paris trazendo na bagagem outra meta igualmente desassombrada – anunciada anteriormente pela Presidenta Dilma Rousseff.

A de reduzir em 37%, até 2025, e em 43%, até 2030, as emissões de gases do efeito estufa do país

O compromisso inclui zerar o desmatamento na Amazônia Legal até 2030.

Nesse mesmo prazo, 12 milhões de hectares de florestas, o equivalente a uma Inglaterra inteira, serão reflorestados.

A economia passará a girar a partir de então com 1/3 (33%) de energia renovável (contra 28% hoje).

Uma pergunta é obrigatória.

Pode uma nação em ruína, como quer o jogral conservador, servir assim de referência da agenda que vai definir o destino dos povos em nosso tempo?

Um grão de mostarda de honestidade intelectual responderia que não.

Somos levados a intuir, portanto, que aquilo que a aliança do golpismo com a vigarice chama de ‘ruína lulopetista’ talvez configure outra coisa.

Na verdade, uma encruzilhada clássica na história das nações.

Que não isenta de erros os seus protagonistas.

Mas que se caracteriza sobretudo pela crispação dos dilemas que envolvem as transições de ciclo de desenvolvimento.

Quais sejam: a disputa pela riqueza corrente se intensifica; a desigual distribuição do estoque torna-se ostensiva e as prioridades, direitos e condicionalidades sobre o fluxo futuro exacerbam as contradições sobre o passo seguinte da sociedade.

Os parâmetros levados pelo governo brasileiro a Paris incorporam a essa travessia por si difícil a contrapartida do ingrediente ambiental.

Considerar indissociável a economia sustentável, da nação socialmente sustentável é o que consagrou o Brasil como referência das nações em luta pelo desenvolvimento na CoP 21.

Ou dito à moda brasileira, como tem acontecido em todos os fóruns internacionais: um futuro sustentável é incompatível com a fome, a miséria, o desabrigo, o arrocho, a insalubridade, as periferias conflagradas e os recursos sonegados às grandes maiorias.

Essa visão de mundo contradiz a de FHC sociólogo, a de FHC presidente e a de FHC golpista.

Por quê?

Porque ela entende que construir uma nação é um ato de ruptura.

Que se renova periodicamente em choques contra interesses dominantes internos e externos.

Delimitar um espaço, fincar estacas e declarar a soberania não é coisa que se faça impunemente em tempo algum e em qualquer latitude

Menos ainda quando se trata, como é o caso brasileiro, de um dos maiores territórios do globo, dotado das maiores reservas de água, de minérios, petróleo, terras férteis, potencial hidrelétrico e solar; ademais de florestas e biodiversidade, tudo isso arrematado por um gigantesco mercado de massa.

O que significa ser tudo isso em uma mudança de época em que a civilização terá que se apoiar nos recursos em declínio –que o Brasil ainda dispõe em abundância-- para construir as novas bases de sua sobrevivência?

Significa combinar a articulação internacional com a soberania intransigente, e justamente por isso expor-se a uma colisão sem trégua com a lógica dos capitais sem lei.

São essas correntezas violentas que movem as raízes estruturais da conjura entre o golpismo e a vigarice nos dias que correm.

Quem melhor encarna esse elo entre a superfície e as profundezas, entre o varejo e o atacado da reordenação do poder local e global é o recém assumido chefe das operações contra Dilma, o tucano Fernando Henrique Cardoso.

Diga-se a seu favor que não se trata de uma ruptura, mas de um desdobramento evolutivo, ancorado em uma antiga certeza: não há espaço para um povo comandar o seu destino no capitalismo do século 21.

Menos ainda –diz hoje FHC-- para a teimosa insistência ‘lulopetista’ em construir uma democracia social tardia no coração da América Latina.

Os acontecimentos recentes referendariam a célebre análise do sociológica de 1967, ‘Dependência e desenvolvimento na América Latina’.

Escrita com Enzo Falletto, no Chile, quatro anos depois do golpe no Brasil, e publicado em 1973, ano da queda de Allende, ela teorizava sobre a inviabilidade de um modelo de desenvolvimento soberano na região.

A dependência é estrutural, dizia FH em 1967.

A dependência é virtuosa, adicionaria FH presidente nos anos 90.

A dependência é inexorável, diz agora o baluarte do golpe institucional, que prescreve a derrubada do governo resiliente em contrariar o enredo consagrado pelo acadêmico e líder conservador.

FH partiu de um diagnóstico correto, verdade seja dita.

Ele apontou o equívoco de boa parte da esquerda brasileira, que em 1964 via na burguesia nacional um aliado dos trabalhadores na luta pelo desenvolvimento.

Mas extraiu daí conclusões equivocadas.

Focado na natureza efetiva dos interesses locais que se opunham aos das massas populares, ‘Dependência e Desenvolvimento na América Latina’ iluminaria a contrapartida estrutural disso: a complementariedade de propósitos entre o capital local e o estrangeiro.

Tal convergência, antes de levar à estagnação pela atrofia do mercado interno, permitiria um padrão de desenvolvimento associado e dependente, no qual o consumo da classe média forneceria o lubrificante de equilíbrio político e econômico.

Nisso a reflexão sociológica representou um avanço.

Sem todavia, definir um verdadeiro marco histórico.

Faltou abordar o essencial: os conflitos inerentes à associação entre o capital local e o internacional e o seu custo em libras de carne social.

A ausência desse olhar dialético magnificaria aquilo que FHC criticava na esquerda nos anos 60: a troca da materialidade da luta de classes por um fatalismo alheio às contradições transformadoras da realidade.

Com a supremacia financeira, a partir dos anos 70/80, o enredo mecanicista ganharia a aparente robustez de um interesse hegemônico, dotado de mando e ubiquidade efetivas.

A aparente consagração da teoria deu estofo ao projeto político do sociólogo na Presidência da República, que a exerceria disposto a personificar sua obra e suas consequências dilapidadoras.

Assim o fez.

O surgimento do PT e a vitória desconcertante do líder operário em 2002 e 2006 –que fez a sucessora em 2010, reeleita em 2014-- introduziria um ruído insuportável no escopo desse conformismo estratégico.

Para revalidar a teoria –e os interesses aos quais ela consagra uma dominância irreversível, é necessário desqualificar a heresia de forma exemplar.

É essa vendeta que impele FHC agora.

É preciso provar que o conformismo de 1967 não esgotou o prazo de validade, após 13 anos de avanços sociais e geopolíticos, sob o comando de governos hereges.

Essa é a sofreguidão embutida na manchete da Folha deste domingo.

‘Após 13 anos de PT, 68% não veem melhora de vida’. E rebaixado em tipologia bem miúda: ‘No período, renda dos mais pobres subiu 129%’. Dissonância logo rebatida na legenda da foto abaixo: ‘crianças atendidas pelo Bolsa Família alimentam-se de arroz e feijão, sem carne’.

Não seria um risco alto demais reduzir-se uma transição de ciclo de desenvolvimento a essa composição de densidade colegial?

Não se o torniquete financeiro internacional –ancorado nas agências de risco e no arrocho fiscal interno -- tanger a pasta de dente de volta ao tubo com chibatadas de juros altos, retração do investimento público, volta do desemprego em massa e a reversão dos ganhos salariais.

É nisso que FHC arrisca sua autoestima póstuma.

Para tanto, o país precisa derreter.

Por dentro e por fora.

O que aconteceu na conferência de Paris neste fim de semana conflita com o enunciado conservador.

Nela, o Brasil deixou de ser a Geni do conservadorismo para se tornar a referência ambiental das nações em desenvolvimento.

Na frente interna, o baile é mais complicado, na medida em que o governo Dilma apostou na discutível tese de que a melhor forma de resistir ao golpismo é adotar a sua agenda econômica.

A busca de indulgência, como se sabe, apenas enfraqueceu a base social do governo, arrastando a economia para um labirinto recessivo que hoje é o maior aliado do golpe.

A disputa extremada se dá agora sob dominância da rua.

Derrotar a sociologia da dependência, neste caso, requer um grau de ousadia maior do que adotar os seus pressupostos de ajuste.

O requisito, a essa altura do campeonato, pressupõe libertar a democracia da passividade a que foi condenada no modelo de governança nas últimas décadas.

É uma corrida contra o tempo.

O desafio maior para o governo e o PT é deixar de ser refém das suas próprias renúncias e omissões.

O sociologia da dependência golpista aposta seu prestígio póstumo no fracasso dessa empreitada.

A ver



quinta-feira, dezembro 10, 2015

A lição de Brizola; e o que mais?


Em 1961, Brizola trouxe transmissores de rádio ao Piratini e denunciou o golpe sem parar. Mas para se resistir a um cerco antipopular, é preciso muito mais.

por: Saul Leblon

reprodução
É frequente nos golpes.

Depois da largada, a cargo de um personagem síntese dos interesses e da vigarice perfilados na conspiração, entra em campo o pelotão do abrandamento para aspergir lavanda no material que povoa o esgoto da democracia.

A operação ‘abrandamento’ está curso no Brasil nos dias que correm, após a largada de Cunha.

Ela é disseminada por aqueles que formam o intestino delgado e sinuoso do golpismo, onde se reprocessa tudo no formato de democracia e lei.

Folha e Serra, estão aí a ministrar à juventude brasileira um recall de como as coisas se deram em 1964.

Elas parecem servir como uma luva no Brasil de 2015.

Leiam o contorcionismo escrachado na primeira página do veículo dos Frias de conhecidas tradições no ramo.

Em garrafais, na edição da segunda-feira : ‘Dilma nunca confiou em mim, diz Temer’. E Serra, obsequioso, logo abaixo: ‘Farei tudo para ajudar a um eventual governo Temer’.

Quer dizer, o desembarque da Normandia está dado; e contará com desprendimento de personagens que Serra encarna tão bem.

No jornal dos Frias, sob o clima sulforoso de ruptura iminente, o dado objetivo da inviabilidade do golpe é tratado em duas linhas de se ler com lupa: ‘15 de 27 governadores reprovam o impeachment e nove não se manifestam’, diz o contraponto liliputiano.

É só o primeiro arranque da cavalaria da isenção.

Virão outros. E outros, outros e outros.

Até o discernimento social ser entorpecido a ponto de se reduzir a nação a um corpo inerte jogado em uma maca, à mercê dos cirurgiões especialistas em liquidar capítulos da história a machadadas.

Não faltarão editoriais evocativos a saudá-los como patronos de uma nova aurora democrática. O do Globo pode replicar o vibrante texto de 2 de abril de 1964, por exemplo: ‘Ressurge a democracia!'. O do Estadão não trairá a atualidade de seus sentimentos se repetir as garrafais estampadas no mesmo 2 de abril, quando o golpe ainda fresco iniciava a repressão e a busca de lideranças e dirigentes partidários em todo o país: ‘Vitorioso o movimento democrático’. Idem, no caso da Folha, que a exemplo de hoje, ‘normalizou’ a violência constitucional, tranquilizando a nação: ‘Congresso declara a Presidência vaga; Mazzilli assume’. Simples assim, viu Temer?

Vale tudo, menos a análise honesta dos interesses em jogo.

Com base nesse método, 1964 nada mais foi que um mal passo do país;um ciclo de irresponsabilidade sob a presidência de um político hesitante e mulherengo.

Esse, o epitáfio conservador à geração que lutou por reformas estruturais para cicatrizar as feridas do apartheid secular brasileiro.

A mesma dissipação personifica agora o ‘problema do país na ‘Dilma autoritária’, mas também ‘má gestora’ e ‘cúmplice do lulopetismo’.

Às favas a crise mundial que implantou a desordem dentro da desordem, aplicando urbi et orbi o receituário que agora se apregoa aqui como a ‘ponte para o futuro’: corta-fecha-desregula-arrocha.

Com a mesma negligência é tratado o cerco diuturno a um governo de 54 milhões de votos, atacado como ilegítimo do minuto final da apuração até hoje.

Depois de obriga-lo à rendição desastrosa ao programa derrotado, passou-se a acusa-lo de estelionato, impedindo-o de governar.

Essa a montanha-russa que rege o país nesses cerca de 337 dias de fúria e noites de assombração, desde a posse de Dilma.

Importa aqui, sobretudo, constatar a habilidosa supressão midiática das verdadeiras pontes para o debate daquilo que interliga o passado ao presente e condiciona o futuro: a disputa em torno da agenda do desenvolvimento brasileiro.

Qual país? Para quem? Como chegar lá? Onde e por que os recursos estrangulam?

A mutação dos conflitos do desenvolvimento em ‘escândalos e corrupção’ é uma velha receita que dá certo.

O governo Jango durou apenas 31 meses –de setembro de 1961 a 1º de abril de 1964.

Durante todo o período esteve acossado pelo bafo renitente desse mesmo ardil dos que tentavam apeá-lo, sobrando ao Presidente espaço reduzido de tempo e circunstância para planejar e governar o país.

Lembra algo?

Ainda assim, em 1964, pesquisas sigilosas do Ibope indicavam que o herdeiro do getulismo teria condições de vencer nova eleição.

Por isso foi dado o golpe preventivo. Ou não haveria necessidade de fazê-lo.

De novo, lembra algo?

Portanto, hoje como ontem, o que estamos vivendo não é uma reação de autodefesa da nação, como querem os vulgarizadores da fatalidade, mas o epílogo de uma progressão de minigolpes frustrados.

Em 1961 tentou-se, por exemplo, impedir a posse de Jango, após a renúncia de Jânio Quadros.

Só a resistência organizada –é oportuno escandir a palavra or-ga-ni-za-da-- impediu a consumação.

É disso –de resistência organizada—que se trata agora e outra vez crucialmente.

A experiência bem sucedida dos anos 60 merece retrospecto, como já se fez neste espaço uma vez.

Mas agora de forma ainda mais oportuna.

Lideranças como Ciro Gomes e o governador Flávio Dino, com razão, evocam a mobilização que vá além da retórica: não há resistência sem organização.

Em 27 de agosto de 1961, o então governador Leonel Brizola personificou esse requisito.

Nascia no Rio Grande do Sul a ‘Cadeia da Legalidade’.

Não era apenas um rótulo.

Formada por uma rede de rádios gaúchas, a resistência operava do porão do Palácio Piratini, para onde o líder gaúcho requisitara os transmissores da rádio Guaíba, de Porto Alegre.

Brizola, porém, não se restringiu a disputar as ‘ondas do éter’ com o golpismo.

Tropas da Brigada Militar foram convocadas pelo governador.

Os soldados passaram a proteger a legalidade e a trincheira radiofônica em vigília diuturna.

Através das ondas médias e curtas, o governador fazia o mesmo 24 horas por dia. Brizola conclamava o povo a ir às ruas contra o golpe da junta militar que, em Brasília, recusava autorização para Jango, em viagem oficial ao exterior, retornar ao país.

Aos poucos, outras emissoras de Porto Alegre e do interior do Estado uniram-se à Rede, que chegou a cravar 100% de audiência no estado.

O efeito contagiante romperia a fronteira gaúcha para formar uma cadeia com 104 emissoras de todo o Brasil e de países vizinhos.

Boletins noticiosos em inglês, espanhol e alemão passaram a ser emitidos.

Foram 10 dias que abalaram o Brasil.

Finalmente, o III Exército rachou e declarou solidariedade ao movimento.

O conjunto forçou o Congresso a buscar uma solução negociada, que circunscreveria Jango nas amarras do parlamentarismo.

Descarnado de instrumentos de comando, o Presidente tomou posse, mas gastaria dois anos de seu mandato na agonia parlamentar.

O impasse corroeu adicionalmente as bases frágeis do investimento, acelerou a fuga de capitais e adicionou pressão à caldeira inflacionária.

Estava criado o lastro para legitimar o discurso udenista do desgoverno, de um Brasil aos cacos, prestes a explodir – ‘se não for hoje, de amanhã não passa’.

A sensação de familiaridade não é gratuita.

Ontem como hoje, a emissão conservadora foi decisiva para levar a classe média brasileira a um discernimento moralista em relação aos desafios do desenvolvimento.

E mesmo assim, apenas uma parte dela.

Pelas urnas é que não haveria de ser a consagração conservadora

Dias antes do golpe, pesquisas do Ibope mantidas então em sigilo, indicavam que 49,8% cogitavam reeleger o Presidente, caso ele se candidatasse em 1965. E nada menos que 59% apoiavam as reformas de base anunciadas no comício da Central do Brasil, considerado a ‘ruptura’ legitimadora do funeral democrático.

Uma proposta de Jango de consultar a sociedade sobre a ampliação da democracia e da ação pública para o desenvolvimento seria sumariamente descartada no Congresso.

Foi assim que a espiral golpista fechou todas as portas à tentativa de formação democrática das grandes maiorias indispensáveis ao desenvolvimento.

O ódio doentio ao governo, às suas propostas e aos seus beneficiários, distorcia, boicotava e interditava o debate, de modo a inviabilizar e criminalizar as bandeiras progressistas.

Formou-se uma tradição. Essa que está aí mais viva que nunca.

Décadas posteriores de censura e monopólio das comunicações estenderiam a qualquer agenda de mudança a mesma demonização dispensada às reformas de base em 64.

Esse é o ponto em que estamos.

No calor dos protestos de junho de 2013, a Presidenta Dilma também propôs uma consulta popular para destravar a reforma do sistema político, degenerado pela tutela do dinheiro grosso

A rejeição em bloco do conservadorismo evidenciou a determinação inoxidável de solapar qualquer canal de participação mais efetiva da sociedade na necessária reordenação do país.

Um pedaço do que se abortou e se reprimiu em 1964 foi resgatado vinte e quatro anos depois pela Constituição de 1988, graças ao impulso excepcional derivado da derrubada da ditadura.

Desde então, os conflitos que interligam o passado ao presente inscreveram o desenvolvimento brasileiro em um paradoxo clássico.

Uma Constituição democrática promete mais que o mercado está disposto a conceder e os donos do dinheiro a tolerar.

Uma fresta de avanços nas políticas sociais, no emprego, no crédito e , sobretudo, na recomposição de poder aquisitivo do salário mínimo, a partir da eleição de Lula, em 2002, revelaria o potencial comprimido nesse impasse: um dos maiores mercados de massa do mundo emergiu com a energia de um leão faminto.

Em menos de uma década consolidou-se uma faixa de consumo de massa que já reúne 53% da população e 46% da renda nacional.

A crise mundial de 2008 eclodiu no meio desse percurso.

Quando a blindagem financeira e ideológica do sistema fraquejou revelou-se com maior nitidez a emergência de um país que já não cabia mais em estruturas desenhadas para 1/3 de sua população.

As desproporções inscritas nesse conflito ocupam o centro do debate político e macroeconômico atual.

Nessa moldura de impasses, golpes e vigarices duelam dois projetos de futuro.

O do impeachment quer submeter a sociedade a um freio de arrumação classista.

‘Os aeroportos estão insuportáveis’ .

Trata-se, no fundo, de dilapidar os salários destruindo as bases do pleno emprego. Rompido o lacre do mercado de trabalho, o resto vem por gravidade.

A dimensão política das escolhas do desenvolvimento precisa ser explicitada para que o conflito possa ativar o discernimento social nessa encruzilhada.

Só a escandalosa ocultação das premissas permite reduzir os impasses a um problema de gestão da Dilma –ou de corrupção do ‘lulopetismo’, a exemplo da caricatura do governo Jango vendida pela mídia nos anos 60.

Para isso a organização –repita-se, organização—de uma Rede da Legalidade contra o golpe é urgente.

Essa, a atualidade da lição de Brizola. Porém, não basta emitir apelos à resistência.

A legalidade terá que colocar na mesa a sua proposta para o passo seguinte do país: é no mínimo duvidoso que se possa resistir a um cerco antipopular sem um projeto popular e democrático, crível, para o futuro da sociedade.

Moniz Bandeira sobre o impeachment: O Brasil está na mira de Wall Street

Moniz Bandeira sobre o impeachment: O Brasil está na mira de Wall Street


Sputnick

Ao comentar a situação político-econômica do Brasil, Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira afirma que “Wall Street está por trás da crise brasileira”, numa referência ao ambiente-sede das grandes corporações financeiras dos Estados Unidos.


De acordo com o cientista político Moniz Bandeira, professor aposentado da Universidade de Brasília e que há mais de 20 anos vive em Heidelberg, na Alemanha, “o objetivo das ações externas contra o Brasil é quebrar a economia e comprar as empresas estatais a preço de banana”.

Em entrevista exclusiva à Sputnik Brasil, Moniz Bandeira fala das ameaças imperialistas e também das questões de ordem política relacionadas à possível instauração de um processo de impeachment contra a Presidenta Dilma Rousseff. Para ele, está em curso um golpe no Brasil “que deve ser contido para não produzir graves consequências para a História do país”.

“É difícil precisar quais são os interesses”, diz o cientista político de Heidelberg. “Mas são interesses estrangeiros, eu creio, em grande parte, de Wall Street e através de outras entidades como The National Endowment for Democracy, USAID e outros que estão incentivando esse golpe no Brasil, aliados às forças internas da direita.”


Sputnik: O objetivo seria quebrar a economia e comprar as empresas brasileiras a preço de banana?

Moniz Bandeira: Exatamente, isso é verdade. Eles querem quebrar a economia brasileira – e é aí que eu vejo mais a ação de Wall Street – e comprar as empresas, como estão fazendo, a preço de nada, com o real desvalorizado a esse ponto.

S: Nós podemos acreditar, então, que o Brasil está na mira de Wall Street?

MB: Está na mira, claro, porque a questão não é só o Brasil, é internacional, é a luta contra a Rússia e a China, mas eles não podem muito contra a China. E querem derrubar a Rússia através da Síria e da Ucrânia. São duas frentes que os Estados Unidos abriram, porque a luta na Síria não é tanto por democracia, isso é bobagem, os EUA não estão se importando com isso. Eles querem mudar o regime para tirar a Base Naval de Tartus e também um ponto em Latakia, ambos da Rússia.

S: Voltando ao Brasil. O senhor entende que o país voltará a sofrer assaltos especulativos?

MB: É muito complicada a situação aí. Eu não estou certo de nada a respeito do Brasil, é muito difícil. Porque é muito difícil também dar um golpe – um golpe civil como eles querem. As Forças Armadas estão contra o golpe. Elas são um fator de resistência nacionalista no Brasil, assim como o Itamaraty.

S: O senhor disse que há órgãos no exterior financiando a grande mídia no Brasil. A mídia, ao pregar o golpe, facilita a entrada das grandes corporações internacionais em prejuízo das empresas brasileiras?

MB: Claro, sobretudo no setor de construção, que tem sido alvo principal desse inquérito, que, aliás, é inconstitucional, é tudo ilegal. O objetivo é destruir as grandes empresas brasileiras, as construtoras que são fatores de expansão mundial do Brasil, e permitir que entrem no mercado brasileiro as multinacionais americanas.

S: O senhor entende que as agências de inteligência dos EUA continuam a espionar a Presidenta Dilma Rousseff e as grandes empresas estatais do país?

MB: Claro, nunca deixaram de espionar. Espionam no Brasil e em todos os países. Se você ler meu livro “Formação do Império Americano”, publicado há dez anos, você verá como eu mostro isso documentado. Já no tempo de Clinton faziam isso. Não há novidade nenhuma na atuação dos EUA. Eu estudo essa questão dos EUA há muitos anos. Acompanhei de perto toda a problemática de Cuba. Estou com 80 anos, desde os meus 20 anos eu assisto a isso que eles fazem na América Latina.

S: O senhor fala em golpe em curso no Brasil. Qual a sua impressão, esse golpe pode ir avante?

MB: Tanto pode como não pode. As possibilidades são muitas. Ontem mesmo o Supremo Tribunal Federal tomou uma medida constitucionalmente correta, que foi anular essa comissão constituída na Câmara por meio de manobras. O que existe é uma luta de ratos e ladrões, um bando, uma gangue, montada pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha, contra uma mulher honrada e honesta como a Presidenta Dilma Rousseff, com todos os erros que ela possa ter cometido. Não há motivo legal nem constitucional para o impeachment.

S: A Presidenta Dilma Rousseff conseguirá superar todas essas dificuldades políticas e concluir o seu mandato em 31 de dezembro de 2018?

MB: É muito difícil avaliar a evolução da situação, porque ela é ruim internacionalmente. A situação internacional é muito ruim. Eu disse, em 2009, quando recebi o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal da Bahia, que uma potência é muito mais perigosa quando está em decadência do que quando conquista o seu império, e os EUA são uma potência em decadência. São muito mais perigosos do que antes.


Leia mais: http://br.sputniknews.com/opiniao/20151209/3020980/Brasil-na-mira-Wall-Street.html#ixzz3twe5bKrM

quarta-feira, novembro 25, 2015

Wilson Cano: 'estamos numa crise que já conta 35 anos de idade!'

Carta Maior

O capitalismo, com sua predominância financeira, nunca criou tantos miseráveis como hoje, nunca alimentou tantas guerras como nos últimos 30 anos.

Rennan Martins - http://www.desenvolvimentistas.com.br/

A crise econômica é vivida pelo Brasil há mais 30 anos, desde que abandonamos o projeto de industrialização e desenvolvimento, ainda nos anos 80. A predominância do capital financeiro sobre o trabalho e o capital produtivo, aliada a internacionalização e desregulação solapou o Estado nacional que não mais dispõe de mecanismos que possibilitem uma gestão econômica voltada para o crescimento, desenvolvimento e o pleno emprego.

Na esteira desta configuração veio também a privatização da Vale, que hoje é uma das donas da Samarco, e, com a lógica do lucro máximo a qualquer custo, o “descontrole sobre os investimentos estrangeiros na mineração” e a precarização dos serviços ambientais públicos, temos o conjunto de fatores confluentes para a tragédia das barragens.

Esta é a avaliação do entrevistado Wilson Cano, professor do Instituto de Economia da Unicamp, que vê as iniciativas do BRICS e Mercosul como positivas, mas insuficientes frente ao atual quadro, alertando ainda que “Ou nos rebelamos contra esse estado insano de coisas, ou acabaremos pior do que estamos hoje”.

Confira:

Encerraremos 2015 com um encolhimento que deve ultrapassar 2% do PIB. Como chegamos neste quadro? Quais são suas principais causas?

Estamos numa crise que já conta 35 anos de idade! Não caímos apenas na passagem 14-15. Passamos pela década de 80, da crise da dívida, em que o Estado nacional foi fragilizado fortemente. Depois, na de 90, com a instauração do neoliberalismo, abriu as comportas da fragilizada economia nacional, com a liberalização comercial e financeira, a privatização e perda de vários direitos trabalhistas. Esta última, valorizou fortemente o câmbio, jogando a pá de cal sobre a indústria nacional. O pior é que não foram apenas os governos “liberais” que fizeram isso: depois de Sarney (final de seu governo), Collor, Itamar e FHC, o PT deram continuidade à política macroeconômica neoliberal, a despeito de suas progressistas políticas sociais e de uma nova postura na política externa.

O quanto o cenário internacional afeta o mercado interno brasileiro? Quanto podemos atribuir a erros de gestão governamental?

Com a queda de exportações, é claro que os setores exportadores perdem, desempregam e eduzem, portanto, a renda por eles gerada. Além do mais, tanto Lula como Dilma praticaram elevadas taxas de juros, aumentando sobremodo a dívida interna e o montante de juros pagos no orçamento federal. Hoje, eles fazem algo como 8% do PIB e cerca de 95% do deficit fiscal!

Poderia nos explicar as razões e a forma com que a crise de 2008 saiu dos países desenvolvidos e agora atinge as economias emergentes?

A predominância do capital financeiro nas relações econômicas internacionais, a política neoliberal e a globalização ampliaram sobremodo a internacionalização das grandes empresas e bancos transacionais -, sobretudo os norteamericanos-. Com a adoção das políticas neoliberais, a maioria dos países foi fortemente afetada por aquela internacionalização, que contaminou sua finança privada e pública, deteriorando suas economias.

De que maneira se estabeleceu a hegemonia dos ditames ortodoxos no campo da política econômica? Por que há tanta dificuldade em produzir novos consensos?

Para acabar de vez com o Padrão Ouro-Libra, fez-se a 1ª Guerra Mundial, para reorganizar as economias destroçadas pela grande depressão dos 30, fez-se a 2ª. guerra. Os EUA consolidaram sua hegemonia com a crise dos 70, liquidando com grande parte do socialismo e restaurando sua hegemonia do capitalismo. Como vê, não é a falta de “pactos” ou de “consensos” (aliás vivemos hoje o de Washington) que “não se arruma a casa” . Não se arruma, porque o capitalismo, com sua predominância financeira, nunca foi tão voraz e irracional, nunca criou tantos miseráveis como hoje, e nunca alimentou e realimentou tantas guerras como nos últimos 30 anos! Soltaram a fera, com a desregulamentação, agora, que se cuidem todos…

Recentemente assistimos o que pode ser o maior desastre ambiental de nossa história, falo do rompimento de duas barragens de rejeitos geridas pela Samarco, em Minas Gerais. Nosso modelo econômico teve parte nisso? Por que?

Sim, tem muito a ver com isso: privatização da VALE; descontrole sobre os investimentos estrangeiros na mineração; fragilização do Estado nacional e de seu corpo técnico de funcionários; o imbróglio das “coalizões” políticas, nas quais não se sabe de quem é a responsabilidade e a autoridade efetiva; a impunidade nos desmandos da coisa pública; a conflituosidade que atingiu o Judiciário; enfim são sequelas do desgoverno no neoliberalismo.

Que razões levaram o governo a adotar a agenda do ajuste fiscal que criticara nas eleições? Que se pode esperar caso aprofundemos a agenda da austeridade?

As razões da ingovernabilidade causada por um orçamento em que os juros da dívida perfazem a metade do orçamento federal e 95% do deficit. Não há ajuste possível, a não ser que se elimine o Bolsa Família, se feche o sistema educacional público e o de saúde pública, preservando, é claro as verbas necessárias à colossal ampliação do sistema presidiário, que deverá crescer sobremodo. Não se corta o gasto público em crises, já nos ensinaram os grandes mestres da economia..

Quais são os caminhos para que retomemos o crescimento? Que medidas imediatas você sugeriria?

Não se pode aplicar nenhuma política macroeconômica de crescimento, quando se está atado a Acordos Internacionais que nos imobilizam: pouco ou nada podemos fazer com nossa indústria, para protegê-la das importações, pois estamos atados à OMC; nossos Bancos Públicos tiveram seus graus de liberdade de ação pública restringidos pelo Acordo de Basiléia. Ou nos rebelamos contra esse estado insano de coisas, ou acabaremos pior do que estamos hoje. Nosso agrupamento ao BRICS e ao MERCOSUL são duas coisas boas e importantes, mas insuficientes para corrigir a rota perdida.

O jogo da paz nas mãos de um estrategista experiente, por J. Carlos de Assis

GGN

Por J. Carlos de Assis

O governo turco, odiado por grande parte de seu povo, não perde por esperar. Talvez tenha que esperar por muito tempo porque faz parte da estratégia militar histórica da Rússia cozinhar o inimigo e trazê-lo para perto de casa e só então liquidá-lo. Foi assim com Carlos XII da Suécia, com Napoleão e com Hitler. Os mais notáveis comandantes militares russos, o Marechal Sucorov, que derrotou Napoleão, e Marechal Zhukov, que derrotou Hitler, ganharam suas medalhas mais significativas usando o recurso da paciência.

Já vimos que Putin é um estrategista cuidadoso e de extrema eficácia. Enquanto o ocidente instigava os nazistas ucranianos a tomarem o poder em Kiev, mediante financiamento aberto do Departamento de Estado norte-americano, ele preparava com astúcia a reincorporação da Crimeia como província russa estratégica. O aparato de informação ocidental ficou desorientado. Obama, com cara de tacho, não soube como reagir a não ser impondo um injustificado e ineficaz bloqueio seletivo contra a Rússia.

Chegará a hora em que a Turquia pagará pela derrubada do bombardeiro russo e pelo assassinato covarde dos dois pilotos. Porém, estejam certos que não será dentro do modelo a ferro e fogo norte-americano, que está destruindo três países que nada tinham a ver com o World Trade Center a pretexto de combater terroristas, com o resultado fantástico de multiplicar justamente a criação de milhares de terroristas no Afeganistão, no Iraque e no Paquistão, entre outros países árabes e não árabes, e até a bucólica Bélgica.

Na verdade, ao contrário da Rússia que se limita a defender interesses estratégicos imediatos, os Estados Unidos querem dominar o mundo a qualquer custo. Washington tem sido a grande fonte de instabilidade em todo o planeta. Agindo sem qualquer escrúpulo, transferiu para os tempos atuais suas táticas fracassadas da Guerra Fria, quando perdeu duas guerras de larga escala, Coreia e Vietnã, mostrando sua incompetência enquanto hegemon. As grandes vitórias norte-americanas foram contra Granada, Haiti e Noriega!

Se tivesse a mesma assessoria belicista dos neoconservadores americanos, Putin poderia se precipitar em aplicar uma vingança justa contra Ancara e levar o mundo à beira de uma guerra global – nas vizinhanças de uma guerra nuclear. Felizmente, há sangue frio em Moscou. O ato terrorista do governo turco gerará suas consequências, mas no momento oportuno. Temos que aprender a compreender Putin. Ele é um estrategista. Apesar dos esforços norte-americanos para isso, ele evitará que o mundo mergulhe numa guerra nuclear.

J. Carlos de Assis é economista, jornalista, doutor pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 20 livros sobre economia política brasileira e do recente “Os Sete Mandamentos do Jornalismo Investigatvo”, ed. Textonovo, SP.

quinta-feira, novembro 19, 2015

Escuadrones de la muerte. La escuela francesa.

O que a Guerra da Argélia revela sobre os ataques em Paris


Sempre que o ocidente é atacado, nossa memória é apagada. Esquecemos das atrocidades que cometemos e que apoiamos a Arábia Saudita.

Robert Fisk


Não foi apenas um dos agressores que sumiu depois do massacre de Paris. Três nações cuja história, ação - e inação - ajudam a explicar o abate do EI escapam dos holofotes dessa resposta quase histérica pros crimes contra a humanidade que ocorreram em Paris: Argélia, Arábia Saudita e Síria.

A identidade franco-argelina de um dos agressores demonstra o quanto a selvagem guerra da França na Argélia (1956-1962) segue influenciando as atrocidades de hoje. A recusa absoluta de considerar o papel da Arábia Saudita como fornecedora da seita Wahabi-sunita, a mais extremista do Islã, na qual o EI acredita, mostra como nossos líderes ainda se recusam a reconhecer ligações entre o reino e a organização que atingiu Paris. E nossa relutância total em aceitar que a única força militar oficial em constante combate com o EI é o exército sírio - que luta por um regime que a França também deseja destruir - significa que não podemos entrar em contato com os impiedosos soldados que estão em ação contra o EI, ainda mais ferozmente do que os curdos.

Sempre que o ocidente é atacado e nossos inocentes são mortos, nosso banco de memória é apagado. Assim, quando os repórteres nos dizem que os 129 mortos em Paris representam a pior atrocidade na França desde a Segunda Guerra Mundial, eles não mencionam o massacre em Paris de até 200 argelinos que participavam de uma marcha ilegal contra selvagem guerra colonial da França na Argélia. A maioria foi assassinada pela polícia francesa, muitos foram torturados no Palais des Sports, tendo seus corpos lançados no rio Sena. Os franceses apenas assumem 40 mortos. O oficial de polícia encarregado era Maurice Papon, que trabalhava para a polícia colaboracionista de Pétain na Segunda Guerra Mundial e deportou mais de mil judeus para a morte.

Omar Ismail Mostafai, um dos assassinos suicidas em Paris, tem origem argelina - e também podem ter os demais suspeitos nomeados. Cherif e Said Kouachi, os irmãos que mataram os jornalistas da Charlie Hebdo, eram também de ascendência argelina. Eles vieram da comunidade argelina de cinco milhões de pessoas na França, para muitos dos quais a guerra da Argélia nunca terminou, e que vivem hoje nas favelas de Saint-Denis e outros bairros argelinos de Paris. No entanto, a origem dos 13 assassinos de novembro - e a história da nação de onde seus pais vieram - tem sido largamente suprimida da narrativa em torno dos acontecimentos horríveis de sexta-feira. Um passaporte sírio com um selo grego é mais interessante, por razões óbvias.

Uma guerra colonial que ocorreu há 50 anos não é justificativa para assassinatos em massa, mas fornece um contexto sem o qual nenhuma explicação do porquê dos ataques terem ocorrido na França faz qualquer sentido. Assim, também, a seita Wahabi-sunita da Arábia Saudita, que é uma fundação do "califado islâmico" e de seus assassinos. Mohammed ibn Abdel al-Wahab era o clérigo purista e filósofo cujo desejo de expurgar os xiitas e demais infiéis do Oriente Médio levou aos massacres cruéis do século XVIII em que a original dinastia al-Saud estava profundamente envolvida.

O atual reino da Arábia, que regularmente decapita supostos criminosos após julgamentos injustos, está construindo um museu Riyadh dedicado aos ensinamentos de al-Wahab, e a raiva do velho prelado contra os idólatras e a imoralidade encontrou expressão na acusação do EI, dizendo que Paris é um centro de "prostituição". Muito do financiamento do EI veio de sauditas - embora, mais uma vez, este fato tenha sido apagado da terrível história do massacre de sexta-feira.

E depois vem a Síria, cujo regime está na mira do governo francês há muito tempo. Ainda assim, o exército de Assad, ultrapassado em homens e em poder de fogo - embora tenham retomado algum território com auxílio dos ataques aéreos russos - é a única força militar treinada enfrentando o EI. Durante muitos anos, os americanos, os britânicos e os franceses disseram que os sírios não lutavam contra o EI. O que é visivelmente uma mentira; Tropas sírias foram expulsas de Palmyra em maio, depois de tentar impedir que comboios suicídas furassem o bloqueio até a cidade - comboios que poderiam ter sido atingidos por aeronaves francesas ou americanas. Cerca de 60.000 entre as tropas sírias já foram mortos, muitos nas mãos do EI e dos islamitas Nusrah - mas o nosso desejo de destruir o regime de Assad é prioridade sobre a necessidade de esmagar o EI.

Os franceses agora se vangloriam de terem atingido Raqqa, a "capital" do EI na Siria, 20 vezes - um ataque de vingança, se é que alguma vez possa ter existido algum. Se este foi um ataque militar sério para liquidar o aparato do EI na Síria, por que os franceses não o fizeram duas semanas atrás? Ou há dois meses? Mais uma vez, infelizmente, o ocidente - e especialmente a França - responde ao EI passionalmente, e não pela razão, sem qualquer contexto histórico, sem reconhecer o papel sombrio que os nossos "moderados" aliados na Arábia representam nessa história de terror. E tem gente que pensa que vamos destruir o EI.

Tradução por Allan Brum

A Verdadeira Ponte para o Futuro

Roberto Requião[1]

O recém-publicado programa da Fundação Ulysses Guimarães “Uma ponte para o futuro” faz lembrar o clássico romance do escritor siciliano Giuseppe Tomasi di Lampedusa, il gattopardo, o Leopardo, em português. O tema obra é a decadência da aristocracia siciliana durante o Risorgimento, a Unificação Italiana conduzida pela luta popular sob a bandeira de um Estado republicano moderno.

A velha e decadente nobreza siciliana não queria saber de mudança. Porém, os ventos revolucionários não podem ser barrados. Mas podem ser desviados, através de uma mudança controlada. O Príncipe de Falconeri resume essa estratégia em sua assertiva que virou um clássico:

“A não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos agora, o povo nos submeterá à República. Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude. ”

Sabemos que o sistema político da Nova República se estabilizou através de uma dicotomia entre PT X PSDB. Essa dicotomia manteve forças progressistas e populares entretidas primeiro na esperança da eleição do PT, depois nos avanços sociais que o PT veio construindo aos poucos. Esse modelo entrou em parafuso com o PT liderando um ajuste fiscal absolutamente antissocial. Em reação, o PSDB ficou inicialmente atônito entre a crítica incoerente e o aplauso com sorriso amarelo. Depois, passou a pedir ainda mais arrocho pelo governo, supostamente revoltado contra a timidez, a desfaçatez ou a suposta falta de convicções do governo em relação ao ajuste. Enfim, o PSDB ficou perdido.

Mais atônito está povo, que depositava suas esperanças na atenção que o PT dava ao social, ainda que há muito já havia percebido que era falsa a dicotomia PT/PSDB na questão da regulação do sistema financeiro e da política macroeconômica. Na prática, para ambos, os juros indecentes foi o 1º mandamento. Dilma até se esforçou para reduzi-lo, mas por não conscientizar o povo sobre isso e por não mexer na estrutura do Tripé Macroeconômico (câmbio flutuante e metas de inflação e superávit primário), que alimenta os juros altos, não teve força para manter a iniciativa.

Sobre as regras de gestão da macroeconomia criadas por FHC, nenhum grande partido ousa levantar dúvidas. É um tabu. Um silêncio total. Uma unanimidade burra total. Apesar dessa unanimidade, um paradoxo acontece todas as eleições, em especial na última.

No ano passado, os pré-candidatos do PSB à presidência, que era a grande “novidade” das eleições, passaram meses falando que a dicotomia PT/PSDB era falsa e mantinha o país na mesmice e que eles queriam ser a alternativa a isso. Eles seriam o veículo da mudança. Porém, depois que todo mundo já tinha mais do que entendido que eles seriam “o novo”, eles vinham dizendo que o Brasil deveria louvar e respeitar o Tripé das regras macroeconômicas de FHC com ainda maior afinco. Apesar do PT e do PSDB nunca terem deixado de segui-lo e muito menos de louvá-lo.

O que me deixava impressionado é que repetiam supostas vantagens desse modelo como se fosse uma grande novidade, e não algo já aborrecidamente repetido pelos jornais, economistas e políticos há mais de 15 anos. Paradoxalmente, todos os candidatos, exceto Luciana do PSOL e Mauro Iasi do PCB faziam o mesmo, louvando o Tripé como se isso fosse inédito e seu grande diferencial. Impressiona-me que candidatos ditos “nanicos”, que tem finalmente tinham a grande chance de suas vidas para serem conhecidos por todos os brasileiros e usar isso para falar algo diferente que justificassem sua candidatura alternativa, se esmerem para usar seus 15 minutos de fama para repetir a mesma coisa que já diziam os principais candidatos.

Isso já havia acontecido em eleições anteriores. Hoje é um jogo que não tem credibilidade. O velho barbudo disse que a história se repete primeiro como tragédia, depois como farsa. Depois que o PT se rendeu à unanimidade do Tripé e agora, pior, ao ajuste draconiano a la grega, ninguém mais acredita nas convicções que os partidos alegam ter e nem na inocência daqueles que se dizem grandes adversários para depois concordarem no essencial.

Recentemente, o Senador Cristovam Buarque mostrou-se como pré-candidato à presidência da República, pois também estaria cansado com a dicotomia entre PT e PSDB. Não me lembro, porém, que ele seja um opositor do modelo do Tripé, provavelmente o maior ponto de consenso entre PT e PSDB. Também não conheço bem a alternativa ao Tripé que formula o outro pré-candidato do partido que quer acabar com dilema PT/PSDB, o ex-Ministro da Fazenda Ciro Gomes.

Todos os políticos criticam os juros elevados do Brasil, mas não lembro de um parlamentar ou chefe do poder executivo que, como eu, tenha criticado abertamente o Tripé como sendo o instrumento, o labirinto, que mantém os juros brasileiros como os maiores do mundo.

A grande maioria ou se cala ou rende homenagens a Mamon [2], através de elogios ao santificado Tripé. Porém, é a necessidade desesperada de reiterar “devoção cega” ao Tripé que está levando a economia brasileira à pior recessão em sua história, enquanto a maior parte do mundo está se recuperando da crise econômica.

No meio dessa crise, a Fundação Ulysses Guimarães, do PMDB, lança com grande destaque um novo documento dando a entender que tem uma solução inovadora para os problemas do Brasil, chamado: “Uma ponte para o futuro”. Inclusive alguns correligionários chegaram a dizer que já era hora de acabar com a “falsa dicotomia” PT x PSDB, repetindo o que já tinham dito os candidatos do PSB, Rede e PDT. Fiquei feliz ao saber que nossos intelectuais estavam se dedicando a propor algo novo para o país.

Imaginam minha decepção ao ler o documento. O programa não tem nada de novo. É apenas uma cópia de um conjunto de medidas repetidamente exigidas pelo setor financeiro, “o mercado”, e que ainda não foram satisfeitas no governo do PT. É a mesma cansativa e monótona oferta de quase todos os partidos e políticos aos interesses da banca e dos rentistas. Ou seja, simula mudar alguma coisa para que tudo fique como está.

Parece que os bancos viraram os únicos eleitores no Brasil, e que todos devem se esmerar em agradá-los repetindo o mesmo ritual de submissão a seus interesses, enquanto criam novas fachadas para desviar a atenção do povo.

Mas isso acontece no mundo inteiro hoje. Na Grécia aconteceu o mesmo. A diferença é que lá o objeto de adoração a Mamon não é o Tripé. Lá é o euro e a Troika. Quando a Grécia entrou na crise, os partidos tradicionais de Centro e Direita se uniram para fazer o ajuste fiscal mais regressivo da história do país.

Não deu certo, a economia afundou e o desemprego alcançou recorde. O povo se revoltou e votou na esquerda tradicional, o partido socialista grego, PASOK, que prometia fazer um ajuste com maior cuidado com o social. Eleitos fizeram o contrário, foram ainda mais antissociais que a velha direita grega. O resultado foi ainda pior. A dívida, que os remédios dos diversos pacotes tentavam curar, só crescia, enquanto os efeitos colaterais matavam o povo grego. Foram 5 pacotes.

Até que o povo grego farto da enganação vota em um jovem, Tsipras, de um partido de extrema esquerda, o SYRIZA, criado e eleito exatamente para impedir o país de continuar se submetendo aos mesmos pacotes que prometiam acabar com o ajuste fiscal e enfrentar a Troika. Depois de 6 meses de negociação, ele se rende a avança a um novo pacote para esmagar ainda mais o povo grego no “moinho de carne” do arrocho fiscal e social, na esperança de que o pouco sangue que ainda restava pudesse satisfazer os insaciáveis credores.

O que resta ao povo grego? Que esperanças pode ter o povo grego na chamada democracia? Ou melhor, o que resta no nosso modelo político de democracia, no sentido original criado pelos mesmos gregos há mais de 2 mil anos, se as imposições do interesse do setor financeiro jamais podem ser contestadas?

Eu tenho esperança, eu ainda conto com a mudança. O povo está vendo todas essas manobras e não está gostando, por isso, vivemos tempos de crise. Crise é a decadência do velho e a possibilidade de ascensão do novo. As crises são pródigas em oportunidades de mudanças. Nelas, a mudança não parece mais impossível.

Mas essa não é apenas uma crise econômica e de submissão do sistema político ao interesse de apenas um setor, o financeiro. Estamos vivendo também uma crise de impaciência do povo com relação à corrupção. A decadência da Nova República, que substituiu o regime militar salta aos olhos. Não sabemos o que pode resultar disso. Pode ser um regime autoritário, pois o que vemos em grande parte da oposição à Presidenta é chamamentos a golpismos dos mais diversos, desde militares, a judiciais, passando até por golpes contábil-fiscais e exaltações fascistas. Esse golpismo permanente me lembra a velha ameaça de Carlos Lacerda a Getúlio Vargas. Carlos Lacerda dizia antes das eleições que consagraram Getúlio:

“O Sr. Getúlio Vargas não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar.”

É visível que estão recorrendo ao mesmo expediente. Isso significa que esse tipo de oposição já não mais respeita as regras democráticas instituídas na Nova República.

Gostaria assim de buscar nas origens da Nova República elementos para entender como poderemos superar essa crise. A Nova República foi plenamente instituída com a Constituição de 88. Os fundamentos dessa Constituição foram primeiramente organizados em um documento do PMDB, publicado 6 anos antes no meio da crise da dívida externa brasileira. O documento chama-se “Esperança e Mudança”. Esse foi o programa que deu alma ao PMDB por mais de uma década. Ele se baseava em três pilares que foram incorporados na constituição de 88:

1) Um regime legal altamente voltado à preservação dos direitos civis, sociais e trabalhistas

2) Uma organização do Estado que visava controlar o poder do Executivo através de um judiciário, legislativo e até mesmo ministério público muito fortalecidos e completamente autônomos.

3) Um regime de intervenção econômica claramente nacional-desenvolvimentista orientado para a industrialização, a preservação do emprego e dos salários e serviços públicos voltados ao interesse da população e não dos lucros.

A constituição foi elaborada e promulgada sob a liderança do presidente PMDB, tendo o PMDB como principal base de apoio e tendo o “Esperança e Mudança” como principal fonte de inspiração. Todavia, foi promulgada no apagar das luzes de uma conturbada fase de transição entre a época de ouro do capitalismo que termina em 1973 e a Era da Globalização, que se inicia nos anos 90 do século XX.

Nos anos 90, vivemos uma avalanche neoliberal, antisocial e antinacional, em total antagonismo com a constituição de 88. Destruí-la passou a ser um dos grandes objetivos das forças que apoiavam o neoliberalismo. Desde então, a constituição recebeu safras anuais de emendas. Primeiro, no governo FHC, buscou-se destruir os fundamentos nacionais-desenvolvimentistas, como o conceito de “empresa nacional”, o controle nacional sobre a produção mineral, os impostos sobre as exportações de commodities, o monopólio do petróleo e diversas medidas que se opunham ao controle do Estado sobre os setores estratégicos e sobre a oferta de serviços públicos.

Depois passaram a atacar os princípios sociais da Constituição. Os direitos de aposentadoria, a destinação de recursos para saúde e educação através da DRU[3], entre outros. Mas ao contrário dos princípios nacional-desenvolvimentistas, nessa área o avanço dos neoliberais foi pequeno, até este ano de 2015. Isso acontece porque a sociedade brasileira, os partidos de esquerda, as alas populares dos vários partidos e o governo do PT sempre se opuseram à maioria das propostas de emendas constitucionais que visavam a perda de direitos sociais, trabalhistas e da atenção especial que a Saúde e a Educação recebem de nossa Constituição.

Porém, neste ano de 2015 tudo mudou. Ao trair suas promessas de campanha, e se entregar a um ajuste fiscal neoliberal e ao aumento dos juros que ela mesma havia combatido com coragem, Dilma perdeu o discurso, o controle da agenda política e a popularidade. Seus adversários na imprensa e no Congresso se aproveitaram disso para tentar toda sorte de golpismos que pudessem ser usados para encurralar o governo.

Aproveitando a fragilidade do governo do PT e a perda de afinidade deste com os setores sociais progressistas e a instabilidade política, os partidos e políticos que queriam agradar o todo poderoso setor financeiro, descobriram que não é mais suficiente apenas oferecer o Tripé e os juros mais altos do mundo. A moda agora é levar como oferenda a Mamon todas as conquistas sociais da Constituição de 88.

Para isso contam com o providencial apoio do verdadeiro equívoco dos nossos constituintes: o Executivo frágil que leva à instabilidade política. Essa tendência decorre do desequilíbrio entre responsabilidade e poder em nossa Constituição. Nela, quase toda responsabilidade recai sobre o Executivo. Porém, se comparado à responsabilidade e ao ônus pelos próprios erros, há excesso de poder no judiciário, no Ministério Público e até na Polícia Federal em relação ao comando do Executivo. Para complicar, o governo do PT, o Congresso, e o STF e o TSE aprovaram leis, práticas e interpretações que reforçaram essa tendência à instabilidade dando mais poder aos órgãos já carentes de responsabilidade.

O mesmo aconteceu em relação à imprensa, que se tornou o maior poder da República. A imprensa assim se tornou o “Poder Moderador” que seria o fiel da balança na condução do processo político. Elegeu e derrubou o Collor, elegeu e garantiu a estabilidade política no governo FHC. Porém, manteve o governo Lula e Dilma sobre crescente pressão. Ao invés de moderar a instabilidade, a acentuou. Não conseguiu derrubar o Presidente Lula, porque – além da incrível capacidade de comunicação, articulação e de atender ao setor financeiro – teve a grande sorte de suceder um governo extremamente impopular e infeliz e pode contar com inédita expansão dos preços das commodities. Dilma não pode contar plenamente com nada disso. Ela começou o primeiro governo sobre uma fortaleza de popularidade e prosperidade. A fortaleza foi corroída em razão dos próprios erros e da tendência do nosso modelo político à instabilidade política.

Considerando esses fatores, chegamos a essa aparente crise terminal da Nova República. Agora, o que precisamos não é radicalizar no neoliberalismo buscando agradar os setores mais poderosos da sociedade e, assim, esgotar o resto da gordura de princípios de estabilidade social, econômica e política que ainda sobrou da Constituição de 88. Se fizermos isso, acabará certamente com o resto de credibilidade que tem esse sistema democrático que estamos vivendo e haverá sérios riscos de o país descambar para o “conflito civil”.

Proponho o contrário. Fazer como o PMDB fez em 1982 com o “Esperança e Mudança”: usar a crise terminal do regime militar para pensar um programa construído com apoio de todas as bases do partido e realmente focado no interesse do povo brasileiro. E mais, eu proponho começarmos a reflexão exatamente sobre o texto do “Esperança e Mudança”, para entendermos o que foi implementando, o que deu certo o que não deu, o que está atual, o que não está.

Eu suspeito que tem algo que nunca foi verdadeiramente implementado no “Esperança e Mudança”: a reflexão aprofundada sobre o Caráter Nacional Brasileiro. A Alma Brasileira deve ser uma inspiração para ação coletiva do Estado em prol da construção de uma Nação que pode ser um modelo e um caminho para uma humanidade. Depois que superarmos definitivamente a desigualdade e a pobreza, nossa Pátria pacífica, mestiça e calorosa será uma luz para guiar a humanidade para longe das trevas da intolerância, das guerras, da indiferença, da falta de solidariedade e do preconceito.

Com muita tristeza temos que admitir a morte do Rio Doce. A crise ambiental e climática já mobiliza as Nações. A crise política e econômica turva as nossas perspectivas de futuro. A intolerância religiosa, o terrorismo e a profusão de conflitos militares parecem estar conduzindo o mundo para uma grande guerra. Tudo isso traz medo e indignação. Precisamos usar essa indignação como combustível da nossa ação. E a nossa ação agora deve ser canalizada para construirmos um novo Projeto Nacional Autêntico. Ele será a verdadeira “Ponte para o Futuro”. Para tal, deverá ser construída com reflexão democrática, participação e dialogo abertos. Proponho ao PMDB e a todos que quiserem contribuir nos lançarmos nessa empreitada com o coração aberto e a esperança renovada para a verdadeira mudança.

Vamos resgatar o orgulho de ser brasileiro!!

Roberto Requião,

Brasília, Distrito Federal, 18 de novembro de 2015.

[1] Roberto Requião é Senador, no segundo mandato. Foi governador do Paraná por três vezes, prefeito de Curitiba e deputado estadual. É graduado em direito e jornalismo com pós-graduação em urbanismo.

[2] Mamon é um termo, derivado da Bíblia, usado para descrever riqueza material ou cobiça, na maioria das vezes, mas nem sempre, personificado como uma divindade. A própria palavra é uma transliteração da palavra hebraica ”Mamom” (מָמוֹן), que significa literalmente “dinheiro”. Como ser, Mamon representa o terceiro pecado, a Ganância ou Avareza, também o anticristo, devorador de almas, e um dos sete príncipes do Inferno. Sua aparência é normalmente relacionada a um nobre de aparência deformada, que carrega um grande saco de moedas de ouro, e “suborna” os humanos para obter suas almas. Em outros casos é visto com uma espécie de pássaro negro (semelhante ao Abutre), porém com dentes capazes de estraçalhar as almas humanas que comprara.

[3] A Desvinculação de Receitas da União (DRU) é um mecanismo que permite ao governo federal usar livremente 20% de todos os tributos federais vinculados por lei a fundos ou despesas. A principal fonte de recursos da DRU são as contribuições sociais, que respondem a cerca de 90% do montante desvinculado.

segunda-feira, novembro 16, 2015

Esperança e mudança: o último grande marco do nacionaldesenvolvimentismo

Gilberto Maringoni - de São Paulo

http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=2725:catid=28&Itemid=23


Há trinta anos vinha há público o mais consistente programa partidário da fase final da ditadura. Era o Esperança e mudança, abrangente documento elaborado por intelectuais desenvolvimentistas e apresentado pelo PMDB, então uma frente de oposições. Era a expressão de um setor da sociedade que desejava fortalecer o caráter planejador do Estado como forma de superação da crise econômica daqueles anos


O mês de setembro próximo marca os trinta anos do lançamento do mais consistente e completo programa partidário desenvolvimentista já elaborado em nosso país. Trata-se do documento Esperança e mudança, lançado pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) em 1982. Suas teses focam o tema central da transição da ditadura (1964-1985) para a democracia: o papel e as atribuições do Estado na sociedade. Exaurido por recorrentes déficits no balanço de pagamentos, pelo endividamento externo tornado impagável após as seguidas elevações de juros nos Estados Unidos, por baixas reservas cambiais e pela inflação “galopante”, o Estado brasileiro do início dos anos 1980 perdera boa parte de sua capacidade de intervir e planejar a economia.

Com um tom antiliberal e nacionalista, o programa peemedebista foi provavelmente a última grande manifestação do nacional- -desenvolvimentismo entre nós. Tais diretrizes, como se sabe, balizaram quase todo nosso processo de industrialização, entre 1930 e 1980, quando o país deixou de ser um imenso produtor agrícola para se tornar a sétima economia do mundo capitalista. Apesar de suas inegáveis qualidades, aquele programa tem sido minimizado pelos historiadores. Não está na internet. O próprio PMDB, em sua página na rede, sequer o menciona. Nem mesmo o livro A história de um rebelde (1966-2006), de autoria do ex-deputado federal Tarcísio Delgado, uma espécie de levantamento oficial sobre a trajetória da agremiação, cita aquelas formulações.

CRISE FINAL DA DITADURA O Esperança e mudança é um arrazoado de 119 páginas, dividido em quatro capítulos: “A transformação democrática”, “Uma nova estratégia de desenvolvimento social”, “Diretrizes para uma política econômica” e “A questão nacional”. Foi seguramente o programa partidário mais abrangente do período, que buscava resolver problemas renitentes de financiamento das estruturas produtivas, ao mesmo tempo em que sinalizava apoio às demandas dos trabalhadores.

Entre outras questões, o documento propunha uma política de ampliação do mercado interno através de políticas de distribuição de renda, a elevação real do salário mínimo, queda dos juros, o aumento do crédito, a reforma agrária, uma reforma tributária progressiva, a adoção de uma política industrial planejada, a renegociação da dívida externa, a nacionalização das riquezas do subsolo, o fortalecimento das empresas estatais, uma política externa soberana e o estreitamento dos laços políticos com a América Latina. O texto foi publicado inicialmente pela Revista do PMDB, em seu número 4, de setembro/outubro de 1982. Logo seria aprovado pela comissão executiva nacional. O cenário em que o programa veio a luz foi o da crise final da ditadura. Seu modelo econômico, pautado pela construção de um setor de bens de capital lastreado pelo Estado, pelo capital privado nacional e financiado em boa parte por poupança externa mostrava-se sem sustentação em um quadro de sérias turbulências internacionais. A elevação unilateral dos juros dos EUA, o fim da paridade ouro/dólar e a elevação dos preços internacionais do petróleo provocaram uma aguda desaceleração da economia mundial, com reflexos internos dramáticos.

ELEIÇÕES DE GOVERNADORES Em 1982, nas primeiras eleições diretas para governos de estado desde 1965, o PMDB conquistaria nove vitórias expressivas: São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Espírito Santo, Amazonas, Pará, Acre, Goiás e Mato Grosso do Sul. O resultado no pleito para prefeitos, vereadores, deputados estaduais, federais e senadores, realizadas concomitantemente, ampliou a expressão nacional da sigla. A chamada frente de oposições se capacitava ali como a principal alternativa de poder no plano nacional. Tal situação obrigou a agremiação a sofisticar seu arsenal programático. O programa partidário não era apenas uma teorização sobre a luta política em curso, o que já seria muito, mas se materializava como uma bússola para três contendas decisivas nos anos seguintes: a campanha das Diretas Já, as eleições presidenciais indiretas de 1985 e a Assembléia Constituinte, cujos membros seriam escolhidos em 1986.

OS DESENVOLVIMENTISTAS A elaboração do texto ficou a cargo de um time de peso na vida intelectual do país. A equipe era composta, entre outros, por Luiz Gonzaga Belluzzo, Luciano Coutinho, Carlos Lessa, João Manuel Cardoso de Mello e Maria da Conceição Tavares. Dizia- -se à época que predominava no documento a visão dos “desenvolvimentistas da Unicamp”. Belluzzo lembra que uma das preocupações do grupo era fazer frente ao problema da carência de financiamentos de longo prazo para a constituição de grandes grupos industriais nacionais. O ideário peemedebista teria de se defrontar com a crise das dívidas externas dos países do terceiro mundo e pelo virtual estancamento de financiamentos estrangeiros. “Avaliávamos ser necessária a constituição de fundos públicos para financiar o desenvolvimento no longo prazo”, lembra o economista. “Nossos grupos empresariais eram frágeis, daí a necessidade que sentíamos de construir grandes empresas com forte indução do Estado, via BNDES”, ressalta ele. Era uma ideia formulada por alguns países asiáticos, que constituíram, entre os anos 1970 e 1980, poderosos conglomerados para competir internacionalmente, com suporte estatal. “Era o caso dos chaebols coreanos”, diz Belluzzo. O primeiro parágrafo do texto sintetiza a visão partidária sobre a disputa política e econômica da época:

O Brasil atravessa uma fase crítica: a pior crise econômica e social desde os anos 30 coexiste com uma profunda crise institucional. As estruturas do Estado estão carcomidas pela privatização do interesse público, a política econômica está imobilizada, o governo carece de largueza de visão para enfrentar o estado de desagregação crescente. O mais grave, porém, é a crise política – o divórcio profundo entre a sociedade e o Estado, a ausência de confiança e de representatividade. A dívida externa sufoca. Obriga o governo a curvar-se ante os grandes interesses bancários. Campeia a corrupção, a imprevidência, a desesperança.

DEFESA DO PLANEJAMENTO Em seguida, é apresentada a proposta de intervenção estatal no desenvolvimento econômico:

O PMDB propõe o planejamento democrático como forma de estabelecer e garantir que o conjunto de políticas públicas obedeça a prioridades fixadas democraticamente – prioridades que busquem um novo estilo de desenvolvimento social. O Planejamento democrático implica na (sic) elaboração de um Plano, sob controle e sob a influência das instituições democráticas. Plano fixado através de lei, supervisionado eficazmente pelo Congresso com a interação e auxílio das organizações populares.

Linhas à frente, são definidas as principais medidas do ideário proposto:

Distribuição de renda começa com uma nova política salarial, começa com a elevação da base dos salários, com o aumento real do salário mínimo, com uma reforma que implante uma reforma justa para a previdência social. (...) É preciso conter a alta contínua do custo de vida através de uma política antiinf lacionária eficaz. (...) A distribuição de renda e de riqueza nacional também não virá, de maneira progressiva e irreversível, sem grandes reformas sociais e institucionais. Sem uma reforma agrária – que garanta o acesso á terra a quem nela trabalhe – e a reorganização da vida rural, apoiada por múltiplas políticas, não será possível criar uma agricultura eficiente, com população rural livre e próspera. Sem uma ampla reforma tributária não será possível eliminar as enormes injustiças do atual sistema de impostos, que gravam muito pesadamente os assalariados de baixa renda enquanto que as classes privilegiadas pagam parcelas insignificantes de seus rendimentos. Sem uma reforma financeira não será possível democratizar o crédito, com taxas de juros baixas, acessíveis aos consumidores de baixa renda. (...) sem uma reforma fundiária urbana não será possível uma verdadeira política urbana, que regularize a situação de milhões de favelados, e que coíba a especulação imobiliária.

Além de propor uma estratégia de desenvolvimento “que liquide com a especulação parasita, sustentada atualmente pela dívida pública interna”, o PMDB advogava medidas emergenciais de curto prazo:

A dívida externa não pode continuar administrando o Brasil (...) não é mais suportável a continuidade de taxas reais de juros estratosféricas. A política alternativa do PMDB começa com a imediata redução do patamar de juros, desvinculando-o do giro da dívida externa. (...)

Hoje em dia há uma concepção mais pragmática do que programática”
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Para Antonio Lassance, documento de 1982 expressa tempo em que agradar o chamado “mercado” não era o centro da ação dos partidos. A seguir, sua opinião

“O Esperança e mudança é um programa elaborado num tempo em que os partidos se esmeravam por explicitar claramente o que pretendiam fazer em termos de política econômica. Nas últimas décadas, essa preocupação foi para o campo oposto, e os partidos se dedicam a listar aquilo que não vão fazer para não desagradar grupos de interesse de maior peso, aqueles eufemisticamente apelidados de “mercado”.

Além disso, três coisas importantes mudaram muito desde então.

Primeiro, a preocupação por apresentar uma concepção ampla e coerente, naquela época, ainda com uma predominância do nacional-desenvolvimentismo, desapareceu quase por completo.

Segundo, a visão de longo prazo, que desapareceu, nos anos 1980, engolida pelo contexto de hiperinflação e, nos anos 1990, pela aversão neoliberal à ideia de planejamento, sendo substituída, na melhor das hipóteses, pelos exercícios de cenarização de riscos e oportunidades aos quais o Brasil deveria simplesmente se adaptar. Só recentemente o longo prazo tem voltado a ter alguma importância, com os planos decenais, de forma setorial.

Finalmente, o terceiro aspecto importante que mudou é que a mediação existente entre economistas com vinculação partidária e a formulação dos programas de governo teve seus laços rompidos. Nesse último aspecto, cada vez mais se vê que esta interlocução é mais pragmática do que programática.

Tais mudanças tiraram dos partidos a condição de espaço de debate e fonte de embates que, em outros momentos, foram importantes para aprimorar a compreensão da sociedade sobre o que estava acontecendo na economia e para engajá-la na mudança de rumos”.

DEMOCRATIZAÇÃO DO ESTADO O tom de todo o documento é claramente influenciado pelas proposições de Raul Prebisch (1901-1986) e Celso Furtado (1920-2004) na Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), com a tônica das relações internacionais expressas nas contradições entre centro e periferia do sistema capitalista. Além disso, as ideias de Roberto Simonsen (1889-1948), sobre a necessidade de um planejamento de longo alcance transparecem naquelas linhas. “Também há traços de Schumpeter, de Marx e de Keynes no texto”, lembra Luiz Gonzaga Belluzzo.

Para concretizar suas diretrizes econômicas, o programa aponta a democratização do Estado como “o único caminho adequado para colocar, definitivamente, a política econômica e social a serviço dos interesses da sociedade”. A tradução política das mudanças era a convocação de uma “Assembléia Nacional Constituinte como solução-síntese”. Ou seja, o documento via nos desarranjos econômicos uma expressão de problemas que só poderiam ser resolvidos no âmbito político. Um grande peso era dado à necessidade da participação dos movimentos sociais na vida nacional e ao fortalecimento dos partidos políticos.

As políticas sociais As iniciativas sociais seriam divididas em três grandes vertentes:

Políticas sociais clássicas, como a salarial, previdenciária, de abastecimento alimentar, saúde, educação, que atuam diretamente sobre o atendimento às necessidades básicas da população.
Políticas de reordenamento do espaço urbano, regional e do meio ambiente. (...)
(...) Políticas estratégicas de reordenamento do sistema produtivo que devem ajustar-se às prioridades redistributivas.
Para controlar a inflação, que em 1982 alcançava a marca de 100% ao ano, o texto propunha:

A reimposição imediata e rigorosa dos controles de preços, com mecanismos antecipatórios de detecção dos aumentos de custo;
A adoção de uma política seletiva de crédito, com mecanismos penalizadores para as empresas que ultrapassem os tetos fixados;
A adoção de uma política de estímulo da oferta de alimentos e gêneros industriais básicos, com controle das margens de lucro industriais e comerciais;
A redução firme e gradativa dos coeficientes de correção monetária e queda imediata da taxa de juros.
Década perdida ou ganha?

A disputa que se abriu na sociedade brasileira entre 1985 e 2002 teve como agentes principais os partidos políticos. A seguir vieram entidades trabalhistas, empresariais, estudantis etc., além de universidades e outras instituições. A grande imprensa, que em sua maior parte apoiou a implantação da ditadura no país, também fez parte dos debates.

O pensamento conservador chama os anos 1980 de década perdida, por ter representado um tempo em que as classes dominantes não conseguiam materializar seu projeto de poder para a sociedade brasileira. Além disso, pesa na apreciação o fato do Brasil ter literalmente quebrado em 1982 e da alta inflação ter se tornado um problema virtualmente crônico.

De outra parte, do ponto de vista dos movimentos democráticos da sociedade brasileira, aquela foi uma década ganha. Não apenas nasceram e se firmaram inúmeras entidades e partidos populares, como se abriu uma nova fase histórica para o país, através do fim da ditadura e da promulgação da Constituição, em 1988.

Ao se voltar para a questão trabalhista, o PMDB propunha “A reposição gradativa do poder real de compra do salário mínimo (...) visando duplicar seu valor real num prazo o mais curto possível”. Concomitantemente a tal medida, o programa advogava a adoção da estabilidade no emprego e de uma reforma na Previdência Social que ampliasse direitos. Outra medida apontada pelo texto seria a realização de uma reforma agrária, que reduzisse o fluxo migratório campo-cidade.

As formulações alcançavam ainda políticas de energia e de transportes, de desenvolvimento científico e tecnológico e de política agrícola. A dada altura, apresentava “Diretrizes para o financiamento da nova etapa de expansão”. Como aspecto central, reafirmava ser “essencial reverter a ‘privatização’ do Estado com uma Reforma Administrativa que recoloque em seus devidos lugares uma grande parte dos organismos e funções que se elidiram da administração direta”.

CONSTITUINTE E REGULAÇÃO O programa teve expressões na ação partidária durante a formulação da Carta de 1988. “Havia ecos do Esperança e mudança no PMDB daquela época, embora o partido já fosse governo e tivesse a experiência de participar dos planos econômicos da gestão Sarney” (1985- 1990), aponta Belluzzo. Em seu primeiro discurso como presidente da Assembléia Nacional Constituinte, em 2 de fevereiro de 1987, Ulysses Guimarães, presidente do PMDB, vocalizava as diretrizes básicas do programa:

A ação reguladora do Estado na atividade econômica: a livre iniciativa, necessária ao desenvolvimento do país, deverá exercer- -se sem o sacrifício dos trabalhadores, e a riqueza não poderá acumular-se ao mesmo tempo em que aumentam a miséria e a fome em benefício dos privilegiados.

Em nossos dias, quando o Brasil procura retomar uma rota de desenvolvimento sustentável, torna-se importante voltar-se ao Esperança e mudança e examinar suas linhas em detalhe. Isso deve ser feito menos pelas questões político-partidárias ou pelo estudo do passado recente e mais para se avaliar os dilemas e contradições atuais da economia brasileira.


Década perdida ou ganha?

O PMDB, fundado em 1980, é caudatário do antigo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), criado em 1966. À época vigorava o bipartidarismo consentido pela ditadura. O governo era sustentado pela Aliança Renovadora Nacional (Arena).

O PMDB abrigou entre os anos 1970 e 1980 um amplo espectro de forças políticas, que ia de liberais de direita até comunistas. Representava também anseios dos setores industriais paulistas, da grande e da média burguesia, das classes médias e de setores do movimento popular.

Com o fim da ditadura e o surgimento de novas agremiações, o partido perdeu seu caráter de frente de oposições.