segunda-feira, agosto 06, 2012

Sobre os jogadores do Senegal tidos como “irresponsáveis”

Eldoret, no Quênia, é sede de uma escola que já formou centenas de fundistas, muitos deles campeões mundiais e olímpicos (foto wikipedia) por Luiz Carlos Azenha Ouvindo alguns comentaristas que falavam sobre o resultado de Reino Unido e Coreia do Sul, no campeonato de futebol masculino das Olimpíadas, não escapou a frase segundo a qual os asiáticos teriam demonstrado sua “tradicional frieza” na cobrança de pênaltis. Um pouco antes, no jogo entre Senegal e México, segundo o comentarista os africanos teriam sido vítimas de recorrente “falta de responsabilidade”, ao cometer duas falhas grotescas na defesa que permitiram a vitória mexicana por 4 a 2. Atribuir erros grosseiros de jogadores de um time a uma característica geral de 1 bilhão de moradores de um continente tão diverso, isso sim é grotesco! Outro comentarista, nas competições de atletismo, sugeriu um estudo “antropológico” para entender o sucesso de somalis, etíopes e quenianos nas provas de longa distância (ué, assim como existem escolas que acumulam conhecimento sobre natação nos Estados Unidos e sobre judô no Brasil, não podem existir escolas similares para fundistas como a de Eldoret, no Quênia? Ou os africanos são incapazes de estabelecer uma tradição em atletismo baseada em conhecimento acumulado?). É triste ver estes conceitos reproduzidos de forma irrefletida. A “frieza” dos asiáticos é uma criação da máquina de propaganda dos Estados Unidos durante o confronto com o Japão na Segunda Guerra Mundial. Nasceu junto com o “perigo amarelo”: os japoneses foram descritos na propaganda como um povo traiçoeiro, desumano, próximo dos répteis de sangue frio. Uma forma de justificar qualquer tipo de barbárie contra o inimigo, como o uso das bombas atômicas sobre Nagasaki e Hiroshima. Hoje a direita dos Estados Unidos reproduz o mesmo discurso contra os árabes. Quanto à “irresponsabilidade” atribuída pelo comentarista aos africanos — “que não aprendem”, ele frisou — é algo muito mais antigo. O racismo sempre reemerge em subtextos sofisticados. Por exemplo: enquanto era para subtrair direitos dos negros, a existência de “raças” era socialmente aceita, com os de pele branca buscando na pseudociência a confirmação de sua suposta “superioridade”. Agora, para manter o status quo ameaçado pela ascensão social dos de pele negra, a elite brasileira foi se socorrer em pesquisas científicas para demonstrar que “raças”, afinal, não existem. Se não existem, não há necessidade de políticas de ação afirmativa ou do enfrentamento de injustiças históricas. Já recomendei anteriormente a leitura do livro Africa, a Biography of the Continent, de John Reader, para quem estiver se iniciando nos estudos do continente. Há, no livro, um capítulo especialmente interessante, A invenção da África, cujo resumo diz: “Entre a primeira e a segunda guerra mundiais, os governos coloniais [europeus, na África] aceitaram maior responsabilidade pelo bem estar das colônias africanas do que antes. O estabelecimento de governos mais eficazes representou, no entanto, a redefinição do continente. As instituições em constante mutação de sociedades não-literárias foram congeladas na palavra escrita da lei; mitos de origem foram transformados em histórias tribais; distinções socieconômicas criaram a ideia de uma tribo melhor que outra”. Agora, uma tradução mambembe de um trecho que considero essencial para entender como muitos reproduzem, ainda hoje, conceitos sobre a África produzidos durante a colonização europeia. Uma África fabricada na cabeça de britânicos, franceses, alemães, belgas, etc: The Invention of Africa “O pressuposto colonial do conhecimento superior de todas as coisas era baseado primeiramente nas convicções do período final da Era Vitoriana europeia [nota do Viomundo: da acumulação de capital e desenvolvimento tecnológico que resultariam na Revolução Industrial] e em segundo lugar na crença de que a África não tinha história ou cultura dignas do nome até que os colonizadores europeus aceitaram a ‘missão sagrada da civilização’. Não foi sem consequência que ‘o movimento europeu em direção à África coincidiu com o pico do racismo e do chauvinismo cultural da Europa na passagem entre os séculos 19 e 20′. As conquistas combinadas do comércio, Cristianismo e força militar haviam dado à Europa uma opinião muito boa de si, que parte do pensamento científico foi persuadido a apoiar. [nota do Viomundo: o autor provavelmente se refere à pseudociência da craniometria, por exemplo, que atribuia a superioridade dos brancos às medidas da caixa craniana] O darwinismo social colocava os europeus no topo da escada evolutiva; os africanos ficavam próximos do pé da escada, um ou dois degraus acima dos moradores da Terra do Fogo e da Tasmânia. Livros prestigiados de História disseminavam a opinião de que o corpo principal de africanos, do povo negro que permanece nas terras tropicais entre o Sahara e o [rio] Limpopo, não tem História. Ficaram, por séculos sem fim, mergulhados na barbárie. Pode ter sido por um decreto da natureza. Por isso permaneceram estagnados, não seguindo nem adiante, nem para trás. Em nenhum lugar do mundo, nem mesmo nos pântanos miasmáticos da América do Sul ou em algumas ilhas abandonadas do Pacífico, a vida humana ficou tão estagnada. O coração da África mal batia. [R. Coupland em Kirk on the Zambezi, 1928] Dado que se assumia que a África não tinha tido História antes da chegada dos colonizadores europeus, não é um exagero dizer que a Europa ‘criou’ a imagem da África que o período colonial legou ao mundo. Tendo traçado as fronteiras entre os estados africanos e estabelecido um governo ‘de civilização’ em cada um deles, com administração hierárquica e apoio militar, a África e a vida de seus habitantes foram reestruturadas para se encaixar na ideia europeia de como elas deveriam ser. Nos seus esforços para estabelecer governos nacionais, os administradores coloniais passaram a inventar tradições para os africanos que tornassem o processo mais aceitável para as populações nativas. Os reinos foram um exemplo clássico. A África possuia dezenas de reinos rudimentares (pelo menos é no que os colonizadores acreditavam) e a ‘teologia’ de uma ‘monarquia imperial’ onisciente, onipontente e onipresente fincou raízes nas colonias britânicas. O Kaiser adquiriu status similar nas colônias alemãs. Diante da tarefa mais difícil de incorporar os africanos a suas tradições republicanas, os franceses aboliram os reinos em seus territórios e convidaram os africanos a jurar lealdade à terra mãe, La France. O estado nação era, em si, um fenômeno relativamente recente quando o processo de colonização [da África] começou. Da mesma forma, as tradições de rei e país, de igreja, escola e regimento eram artefatos da reestruturação social europeia do fim do século 19. Mas a Primeira Guerra Mundial tinha dado a estas coisas uma pátina de uso que foi interpretada como sinal de antiguidade duradoura. Respeito pela tradição estava no auge depois da guerra e os colonizadores estavam predispostos a olhar favoravelmente para tudo o que considerassem tradicional na África. Eles começaram a codificar e promulgar as tradições que identificavam. Entre 1905 e 1914 cerca de oitenta livros sobre etnografia africana foram publicados na Europa; a maior parte devotada a grupos particulares, de autoria de administradores locais. Durante o mesmo período, a Alemanha patrocinou expedições etnográficas que visitaram a maior parte da África tropical. Os belgas tinha patrocinado um estudo dos Zandes (do sudoeste do Sudão) e sociólogos belgas desenvolveram um questionário para obter informações etnográficas de missionários e outros. Os britânicos também estavam ativos. O governo do Sudão encomendou levantamentos etnográficos de C.G.Seligman (que subsequentemente se tornou professor de etnologia em Londres) entre 1909-1912 e o Escritório Colonial indicou Northcote Thomas para fazer uma série de estudos etnográficos no sul da Nigéria e em Serra Leoa. [...] Depois da Primeira Guerra Mundial, os estudos sobre a África passaram da mera coleta de informações sobre povos ‘primitivos’ e suas características físicas para o estudo de suas instituições, costumes, crenças e modos de vida. [...] Coletivamente, administradores coloniais e acadêmicos identificaram as ‘tradições’ de prática social que supostamente distinguiriam um grupo de outro, desenhando fronteiras nos mapas que atribuiam territórios particulares a determinados grupos. Escreveram nomes, endereços, datas de nascimento e escreveram as leis pelas quais as pessoas deveriam conduzir suas vidas. Foi desta forma que o mundo da escrita transformou as práticas flexíveis dos costumes locais em leis duras e imutáveis. O Direito consuetudinário sempre levou em conta avaliações contemporâneas ao fazer julgamentos, mas depois que uma série particular de interpretações foi codificada em lei colonial, o Direito se tornou rígido e incapaz de refletir futuras mudanças. [...] As mais profundas invenções de tradição na África colonial provavelmente aconteceram precisamente quando os administradores europeus acreditavam que estavam respeitando antigos costumes africanos, de forma que o que era tido como ‘Direito consuetudinário, de terras, de estrutura política e, assim por diante, foram todos inventados pela codificação colonial’”. Os colonizadores alegavam que estavam meramente confirmando a importância de tradições existentes, mas tradições na África (como em qualquer outro lugar) são simplesmente modos aceitáveis de comportamento que num determinado momento funcionam para o benefício da sociedade como um todo. Elas persistem enquanto o benefício for evidente e desaparecem quando deixa de ser. Nenhuma tradição dura para sempre. Mudança e adaptabilidade estão na própria essência da existência humana — em nenhum lugar mais que na África. O paradoxo é dolorosamente evidente: ao criar uma imagem da África baseada em tradições imutáveis, os colonizadores condenaram o continente a viver num momento reconstruído de seu passado, completo com nativos em roupas tradicionais, animais selvagens e paisagens primitivas”. PS do Viomundo: O texto segue para explicar como os colonizadores belgas contribuiram para transformar distinções tênues entre Tutsis e Hutus, no que hoje é Ruanda, em ‘etnias’ distintas, com direito a carteira de identidade e tudo. Como eram parecidos, casavam entre si e não havia provas de distinção ancestral, “uma fórmula simples foi aplicada: os que tinham dez vacas ou mais foram classificados como Tutsi, os que tinham menos eram Hutu”.

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