sexta-feira, fevereiro 17, 2012

Se não é guerra, o que é?



Quando o ministro Guido Mantega referiu-se à existência de uma “guerra cambial”, houve grande alvoroço e não lhe pouparam críticas. Algumas até ferozes, alimentadas pelo nosso velho “complexo de vira-lata”.

Indignaram-se com a ousadia do representante de um país emergente, que, eles creem, superou suas dificuldades mais ajudado pela sorte (a expansão mundial) do que pelas qualidades da política que herdou e piorou. E mais, que não se cansa de piorá-la com intervenções no mercado cambial condenadas pela “boa teoria econômica”.

Pois bem. Os fatos agora evidenciam que há sim uma “guerra cambial” entre as três maiores economias do mundo (os Estados Unidos, a eurolândia e a China) e que os países emergentes estão sendo constrangidos a aceitar o jogo sujo em nome de uma precária cooperação mundial.

É óbvio que a China mantém há mais de duas décadas uma inteligente política de desenvolvimento (estimulada pelos EUA para isolá-la da URSS no tempo da Guerra Fria), apoiada numa consistente taxa de câmbio superdesvalorizada.

A briga de cachorro grande é entre os EUA e a eurolândia

Não se trata de criticar a China. Pelo contrário, devemos cumprimentá-la (ou invejá-la?) por cuidar tão bem dos interesses do povo chinês. Mas devemos reconhecer que manter o câmbio superdesvalorizado e fingir que segue as regras do “bom e honesto comércio”, definidas pela OMC, é uma manifestação hostil com relação aos seus parceiros.

No caso, por exemplo, da competição interna entre a produção nacional e os produtos chineses importados, podemos aceitar que a superdesvalorização do yuan, somada à supervalorização do real, não é tudo. É, entretanto, no mínimo uma tolice dizer que ela é devida exclusivamente à incapacidade competitiva da indústria nacional.

A luta entre os três parceiros é complicada. A China leva uma grande vantagem: adotou, sem vergonha e sem remorso, uma espécie de “dollar standard”, com o yuan controlado num nível praticamente fixo com relação ao valor do dólar americano. A briga de cachorro grande é entre os EUA e a eurolândia. O primeiro beneficia-se do fato de ser uma federação fiscal com instrumentos redistributivos, ter uma única língua, ter facilidade migratória e ter um Banco Central que é “emprestador de última instância”.

Para entender a situação, é preciso lembrar que o socorro ao setor financeiro, que produziu a crise de 2007-09, destruiu as finanças dos Estados Unidos e revelou as violações fiscais dos países da eurolândia, cuja correção exige um “aperto fiscal”, ou seja, uma redução da demanda pública.

Para não diminuir a demanda global (e o crescimento do PIB) é preciso, portanto, aumentar a demanda do setor privado: o consumo (com menor taxa de juro e ampliação do crédito); o investimento (com juro baixo e cooptação da confiança dos empresários) e a exportação (com a desvalorização da moeda).

É por isso que o Federal Reserve (Fed) e o Banco Central Europeu (BCE), com suas políticas monetárias, estão criando uma desvalorização competitiva entre o dólar e o euro.

Os emergentes (com exceção da China) veem as suas taxas de câmbio valorizarem-se, e seus mercados predados pelo uso da capacidade de produção ociosa dos três gigantes.

Tomemos o caso da Itália para facilitar o entendimento. Não há dúvida que: 1) suas finanças nunca foram de boa qualidade e que nas últimas duas décadas aplicou vários “planos de salvação” nacional (um pelo próprio novo presidente do BCE, Mario Draghi); 2) acumulou uma dívida imensa (com relação ao PIB); 3) foi enormemente beneficiada pela entrada na zona do euro, que produziu uma convergência da taxa de juros que paga, à taxa da dívida alemã, porque os mercados anteciparam que ela iria cumprir as condições do Tratado de Maastricht (déficit estrutural abaixo de 3% e redução da relação dívida/PIB para 60%); 4) a evolução da política italiana e a falta de continência salarial valorizou “virtualmente” a moeda italiana (a lira), que está apenas nominalmente fixada com relação ao euro; 5) isso produziu um déficit em conta corrente, que foi financiado de forma inconsequente pelo sistema financeiro internacional com a conivência das “notas” das agências de risco para os papéis italianos; e 6) quando chegou o momento da verdade (que chegaria de qualquer forma, mas foi antecipado pelo constrangimento do crédito produzido pela crise americana), ela teve de submeter-se a um regime de economia “forçada”, que criou uma pressão recessiva que torna duvidosa a solução do problema.

Se não estivesse comprometida com o euro, a Itália desvalorizaria a sua moeda (a lira, como fez várias vezes no passado). O aumento das suas exportações e a diminuição de suas importações compensariam parte da queda da demanda pública pelo aumento da demanda privada. Como é evidente, esse caminho não existe mais.

Qual é a solução mais razoável para a Itália e seus parceiros dentro do euro? A desvalorização do próprio euro com relação ao dólar! Ela não terá nenhum efeito sobre o comércio dentro da eurolândia, mas será equivalente a uma desvalorização das suas moedas, aumentando as exportações e diminuindo importações para fora da eurolândia.

Pois bem. Um pouco mais da metade das exportações italianas e de seus parceiros é para países fora da eurolândia, o que significa que a desvalorização do euro é uma ajuda para compensar parte da queda de atividade interna produzida pela política de aperto fiscal.

A grave embrulhada é que a política do Fed também estimula a desvalorização do dólar frente ao euro, o que já produz resultado visível a olho nu nos saldos em conta corrente (excluído o petróleo) dos Estados Unidos…


Publicado originalmente no Valor Econômico.

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