domingo, junho 05, 2011

Novo estudo mostra como a Inquisição usou o terror para manter o controle social



Marcos Guterman – O Estado de S.Paulo

A Inquisição foi o triunfo da organização burocrática para o estabelecimento de uma atmosfera de terror que tinha como objetivo manter a sociedade sob controle político e ideológico feroz, em quatro continentes. Estabeleceu a culpa como algo inescapável, e quem ousasse resistir a isso enlouquecia em sessões de tortura ou ardia nas fogueiras “purificadoras”. Sobretudo, estabeleceu que o real não existia mais, senão como elaboração das autoridades eclesiásticas. Na visão do historiador britânico Toby Green, autor de Inquisição – O Reino do Terror (Objetiva), que acaba de sair no Brasil, os inquisidores seriam, nesse sentido, a “primeira semente” dos regimes de extrema direita que assombrariam o século 20. “A instituição da Inquisição implicava uma ideia nova de Estado e poder político”, disse Green em entrevista ao Sabático.

O livro de Green mostra que a função da autoridade, nesse contexto, é a de determinar a racionalidade dessa ficção construída pelo terror. Nada pode contrariar o ditado pela autoridade, por motivos óbvios: a contestação fere a tão desejada lógica. A autoridade se legitima por “conhecer” o subterrâneo, as mensagens subjacentes, o sistema invisível – e, portanto, é a única capaz de legislar. O desejo da autoridade deve ser interpretado como a verdade.

O interrogatório da Inquisição fazia o interrogado admitir a culpa sobre algo que ele muitas vezes nem imaginava o que fosse. O contexto do processo era inteiramente mantido em segredo, para que ao réu não restasse alternativa senão admitir como fato não a realidade, mas o que a autoridade inquisitorial afirmava ser a realidade. Tudo era elaborado para que houvesse a confissão “espontânea” – e a responsabilidade pela tortura era do torturado, porque resistiu à confissão.

O terror da perspectiva do suplício era um dos pilares do sistema. O outro era a onipresença da Inquisição, graças ao estímulo à delação, justamente o fator que gerava energia para o trabalho dos inquisidores – o ônus da prova cabia sempre ao acusado, e o réu era obrigado a apresentar testemunhas de sua inocência, enquanto o delator podia manter-se anônimo. Denunciar supostos hereges não era um direito, mas uma obrigação religiosa, que constava em “editais da fé”. Era, portanto, um sistema que se autoalimentava e que criou toda uma mise-en-scène, os “autos de fé”, para impressionar a arraia-miúda e legitimar sua ação. Não restava ao réu nenhuma alternativa senão admitir sua “culpa”, e então o circuito se fechava, conferindo a lógica perfeita ao discurso inquisitorial.

O interesse de Green, diante dessas constatações, é mostrar o aspecto que ele chama de “psicológico” da perseguição inquisitorial. É esse o trunfo que o britânico diz ter em sua abordagem, porque, segundo ele, a historiografia tradicional sobre o tema se centra na instituição da Inquisição e na tortura, enquanto o lado emocional “fica relegado pelos historiadores aos romancistas”.

De fato, a historiografia da Inquisição, grosso modo, está preocupada com as relações de poder e com o modelo legal aplicado aos réus dos processos. A reconstrução da mentalidade da época induziu Green a sugerir que “a Inquisição havia construído uma sociedade cada vez mais neurótica”, por causa da “repressão de instintos”. Questionado sobre se essa visão freudiana – isto é, um modelo teórico com a enorme carga de modernidade racional do início do século 20, fruto do “desencantamento do mundo” – não seria anacrônica para esquadrinhar um momento da história em que a religião era o centro do poder, Green rebate em duas frentes. Primeiro, argumenta que os óculos de Freud são “recursos legítimos para enxergar não somente o que aconteceu, mas por que aconteceu”, na medida em que identifica a reação da mente à repressão; segundo, ele contesta que a religião fosse central na Inquisição.

“A Inquisição tinha mais a ver com o poder do Estado, secular, do que com as leis de religião, que muitas vezes não tinham muita relação com as próprias normas da Inquisição”, explicou Green na entrevista. Em sua visão, o poder da Inquisição crescia ou declinava segundo o poder de ação dos monarcas – quanto mais os reis precisavam de controle e de riqueza, mais a violência inquisitorial se expandia. Esse perfil ficou claro principalmente com a Inquisição espanhola, instalada em 1478 e que só foi desmontada em 1834.

Nesse longo período, criou-se um sistema de invenção de inimigos para mascarar o declínio acelerado dos impérios ibéricos – a historiadora Anita Novinsky, principal estudiosa da Inquisição no Brasil, considera o próprio estabelecimento dos tribunais eclesiásticos como o sintoma central dessa decadência, cuja culminância foi a limpeza étnica, fatal para o desenvolvimento intelectual e econômico português e espanhol. Na opinião de Green, que incorpora o modelo teórico de Novinsky, a Inquisição “revela as origens do racismo moderno, ao escolher o caminho da limpeza do sangue, que é uma temática de suma importância para compreender a história do Estado moderno”.

De fato, há historiadores consagrados, como Raul Hillberg, que sustentam existir uma relação ideológica entre os éditos católicos a respeito do tratamento dos judeus ao longo da Era Moderna e as diversas leis nazistas a propósito da “pureza do sangue ariano”. É difícil não se dobrar às evidências que mostram que, tanto em um caso como em outro, “pureza de sangue” queria dizer exatamente a mesma coisa: sangue sem traços judaicos. Também não é possível escapar da sugestão segundo a qual a ubiquidade do terror era o esteio da coesão social desejada no nazismo quanto na Inquisição. Os menores detalhes do cotidiano eram objeto de paranoia, porque poderiam ser interpretados como traição ao projeto de “aperfeiçoamento” social e religioso, a partir de leis propositalmente confusas e arbitrárias. Somente as “autoridades” eram capazes de fornecer a lógica necessária para dar diretrizes racionais em meio a esse caos. Aos demais, restava aceder e renunciar à capacidade de refletir sobre o mundo.

Mesmo correndo o risco do anacronismo, Green diz que vale a pena explorar essas semelhanças. Ele admite que Torquemada – o mais emblemático inquisidor ibérico – e Hitler não podem ser comparados, mas “um pode ser a semente do outro”. E o historiador não se contenta com os nazistas. Ele sugere que os ditadores Francisco Franco, na Espanha, e Antonio Salazar, em Portugal, refletiam, de certa maneira, as mesmas profundas divisões sociais que a Inquisição passou séculos tratando de controlar.

O domínio de Salazar e Franco, na visão de Green, respeita a mesma lógica dos inquisidores – era preciso alimentar um inimigo interno para justificar o arbítrio, em nome de uma visão distorcida do mundo. Green não escreve, mas está claro que é uma referência aos atropelos jurídicos da “guerra ao terror” empreendida pelos americanos, movidos por um governo que dividiu o mundo em “conosco” e “contra nós”. “É um processo que toda sociedade expansionista tem experimentado”, disse Green. “O que a Inquisição mostra, e também a “guerra ao terror”, é que a busca de inimigos externos sempre pode acabar numa caçada aos inimigos internos. Por essa razão é algo tão perigoso.”

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