domingo, agosto 02, 2009

Um mosaico de sequências em oposição


Antonio Gonçalves Filho





É primorosa a edição de Crônica de Um Verão lançada pela Videofilmes. Vem com um encarte que traz o manifesto de Edgar Morin sobre o cinéma verité e faixas comentadas por Eduardo Escorel, Eduardo Coutinho e Carlos Alberto Mattos. No entanto, uma nova versão ampliada do documentário - que inaugurou o cinéma verité com base na experiência de Flaherty e nas teorias de Dziga Vertov -, deverá sugerir outras leituras. A montagem está sendo supervisionada pelo próprio Morin (uma vez que Jean Rouch não está mais entre nós).

Não se trata apenas de um problema técnico, esse o de reduzir 25 horas filmadas a quatro ou cinco horas. É certo que há meio século já foi difícil para a dupla Rouch-Morin extrair do material original um filme de apenas 85 minutos - ainda mais uma produção ambiciosa que usava a palavra ?verdade? para se vender. A simples transformação do tempo real em cinematográfico, segundo Morin, era capaz de produzir novos significados a partir da montagem - e, se na época, já foi difícil juntar depoimentos heterogênios sobre um tema um tanto vago - como você vive? -, 50 anos depois parece uma tarefa impossível.

Pelo menos agora Morin não será pressionado pela produtora, a Argos Filmes, a montar um filme palatável. Ele promete uma edição sem concessões. Em 1960, Morin concebeu essa montagem com base numa cronologia, que começava na primavera e terminava no outono, acompanhando a evolução de certo número de pessoas escolhidas para dar depoimentos sobre seu cotidiano - de um operário da Renault a jovens africanos imigrantes, passando por um mecânico e uma pesquisadora.

Todos esses personagens emergem da vida cotidiana para falar de seus sonhos e discutir temas como a guerra da Argélia, as relações inter-raciais e o exibicionismo moderno (o biquíni acabava de conquistar Saint-Tropez). A montagem de Rouch desses depoimentos chegou a uma edição final de sete horas. A de Morin, quatro. Morin eliminou três horas. Rouch não concordou. Morin queria um mosaico “composto de sequências em oposição” conduzidas pelo tema “como você vive”. Rouch queria um filme mais biográfico. Para complicar, o produtor Anatole Dauman não dava nenhum crédito a Morin e tampouco aceitava a montagem de Rouch.

Revendo o filme, é compreensível a preocupação do produtor. Os próprios personagens não gostam muito do resultado. Nem mesmo os realizadores. Ficam frustrados e decidem que o ideal seria fazer uma versão de quatro horas para ser exibida em cineclubes, porque Crônica de Um Verão não era apenas um filme etnográfico como os outros de Rouch, mas um documentário “existencial”. E isso implica assumir o olho da câmera como psicanalítico. Não foi por acaso que alguns críticos, na época, acusaram a dupla Rouch-Morin de fazer psicanálise com ela. Teriam os dois o direito de convocar pessoas para um projeto como esse?

Passados quase 50 anos, essa é uma pergunta ainda difícil de responder, especialmente quando se acompanha o depoimento de uma deprimida. O filme é híbrido e desordenado, como admite Morin, mas de uma coisa ninguém pode acusá-lo: falta de ousadia.

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